Originalmente publicado em 28/09/2016, no Conexão Israel
A morte de Shimon Peres, aos 93 anos, representa o fim da segunda geração de políticos em Israel, e de um uma instituição, sobretudo. Se a primeira, de Ben Gurion, Menachem Begin, Moshe Sharett, Itzhak Tabenkin e Golda Meir, representava os pais fundadores das principais doutrinas sionistas postas em prática, a segunda, composta por Itzhak Rabin, Itzhak Shamir, Ariel Sharon e Shulamit Aloni, era formada pelos “estadistas-pragmáticos”: a maioria serviu o exército (ou a embriões dele), já nasceram na Palestina britânica (ou emigraram jovens) e exerceram seus postos com um pouco menos de romantismo do que os antecessores, pois se formaram em meio à realidade do Estado já criado. Apesar de seu forte pragmatismo, podem ser considerados grandes estadistas. Os últimos, pelo menos. Shimon Peres, no caso, foi o último deles.
A história do ex-líder trabalhista praticamente se mistura com a do país, desde antes de sua fundação. Shimon Peres nasceu em 1923, o último ano da terceira grande onda de aliot (imigração judaica) à Palestina das cinco que antecederam a criação do Estado de Israel. Nascido Szymon Perski, fez aliá com sua família aos 11 anos, em 1934. Como neto de um rabino ortodoxo chassídico, teve sua infância influenciada por um forte convívio com a religião e com o estudo bíblico, e, ao chegar ao Ishuv (embrião do futuro Estado judeu na Palestina), recebeu educação sionista secular em Tel-Aviv e na escola agrícola Ben-Shemen. Foi um dos jovens fundadores do Kibutz Alumot (próximo ao Lago Kineret - Mar da Galileia), e, em 1941, aos 18 anos, foi eleito mazkir (secretário geral) do movimento juvenil Hanoar Haoved (Juventude Trabalhadora), até hoje o segundo maior de Israel. Em 1944, voltou ao kibutz, onde foi agricultor e exerceu postos administrativos, sendo então eleito para liderar a ala jovem do Mapai (antigo Partido Trabalhista).
Daí para frente, Peres teve uma ascensão meteórica na política, e sua porta de entrada foi a defesa do país. Apesar de jamais ter servido como combatente nem no exército nem em grupos de defesa, Peres era um dos maiores especialistas no tema do movimento sionista e em Israel de forma geral. Quando o Estado foi declarado, Peres foi nomeado assessor do ministro da Defesa e enviado aos EUA em seu posto. Lá pode estudar Economia e Gestão, e voltar a Israel em princípios dos anos 1950 como uma das principais referências intelectuais de seu partido, até que em 1952 foi nomeado diretor-geral do Ministério da Defesa. Nesta função, Peres aproximou Israel da França, negociou a compra de armamentos estratégicos, preparou o país para a Guerra do Suez (1956) e iniciou a construção do reator nuclear de Dimona (no sul de Israel).
Em 1959, Shimon Peres foi eleito pela primeira vez para o parlamento israelense (Knesset) pelo Mapai e designado ao posto de vice-ministro da Defesa. Ele foi um dos políticos que se colocou ao lado de Ben-Gurion na crise gerada pelo Caso Lavon, quando um escândalo de corrupção afastou o primeiro-ministro dos principais líderes do partido. Em 1965, Ben-Gurion, ao perder a “queda de braço”, retirou-se do Mapai e criou o partido Rafi (Lista dos Trabalhadores de Israel), e Peres, assim como Moshe Dayan, o seguiu. Em 1968, o Rafi se juntou ao governo do Mapai e Peres assumiu sua primeira pasta: a do Ministério da Absorção. De lá até 1977, quando assumiu a liderança do Partido Trabalhista, foi ministro do Transporte e das Comunicações e assumiu, durante o primeiro governo Rabin (1974-77) a mais prestigiada pasta do país: a do Ministério da Defesa. Isso já o credenciava ao posto de líder do maior partido do país. Teve alguns arranca-rabos com Rabin, inclusive quando apoiou os colonos religiosos na região de Sebastia, contra a vontade do primeiro-ministro (Peres se saiu vitorioso nessa disputa, ironizada no vídeo abaixo da série “Os judeus estão chegando”).
Shimon Peres assumiu a liderança do Partido Trabalhista frente à renúncia de seu até então desafeto político, Itzhak Rabin, em 1977. Rabin, então primeiro-ministro, renunciou à liderança do partido e ao cargo de primeiro-ministro ao ser descoberta uma conta bancária de sua esposa, Leah, nos EUA na época em que foi embaixador. Caiu no colo de Peres a missão de conduzir o partido a outra vitória, mas o que aconteceu foi justamente o contrário: em 1977 o partido Likud, do líder Menachem Begin, venceu pela primeira vez as eleições em Israel e formou o governo. Peres foi o primeiro líder trabalhista a liderar a oposição.
Após anos difíceis para a sua corrente, em 1984 Peres teve a chance de, pela primeira vez, chefiar o Estado: devido ao equilíbrio de forças entre os trabalhistas e Likud nas eleições daquele ano, Peres e Shamir, então líder do Likud, estabeleceram um governo de união nacional, revezando o cargo de primeiro-ministro a cada dois anos. Shimon Peres, que havia sido vice-presidente da Internacional Socialista em 1978, foi o primeiro-ministro responsável pela liberalização da economia israelense através da implementação do Novo Shekel: o pacote de austeridade fora lançado e Peres, por sua proximidade com a Central dos Trabalhadores (Histadrut HaOvdim), evitava grandes protestos. O pacote não era muito popular, mas acabou com a híperinflação e deu prestígio ao governo. Durante os anos em que Shamir governou o país, Peres atuou como vice-primeiro-ministro (1986-90), ministro da Indústria e Comércio e ministro das Relações Exteriores. As eleições de 1988 também igualaram as forças dos dois blocos e geraram outro governo de união. Peres, no entanto, em 1990, quando se aproximava sua vez de governar, tentou por baixo dos panos retirar o Likud da coalizão em troca do apoio dos ortodoxos sefaraditas do Shas (operação que foi chamada de “manobra fedorenta”). O resultado foi negativo: o líder do Shas, rabino Ovadia Yossef, entregou a Shamir os planos de Peres e o Likud fechou um acordo com o Shas, deixando os trabalhistas de Peres de fora. Isso foi o suficiente para que o nome de Itzhak Rabin ganhasse força nas internas trabalhistas e o de Peres fosse relegado a segundo plano.
Rabin venceu Shamir nas eleições de 1992 e, contra a sua vontade, empossou Peres como ministro das Relações Exteriores. A partir deste momento, quando os dois começaram a trabalhar juntos efetivamente, suas relações pessoais melhoraram, enquanto que politicamente passaram a se entender melhor que nunca. Foi Peres quem aproximou Rabin de Arafat e articulou os Acordos de Oslo. Não foi à toa que foi condecorado com o Prêmio Nobel da Paz junto com Rabin e Arafat. Peres ajudou a expandir as relações diplomáticas de Israel após o fim da Guerra Fria, inclusive com países árabes e deu a volta por cima após seu questionável desempenho como chanceler entre 1986-90, quando negociou venda de armas para a África do Sul do Apartheid.
O fim da era de protagonismo de Peres se deu com o assassinato de Rabin, em 1995. O político não conseguiu derrotar Benjamin Netanyahu nas eleições em 1996 e herdou a alcunha de perdedor por não conseguir vencer as eleições. Renunciou à liderança dos trabalhistas, deixando o posto a Ehud Barak, mas sem abandonar a vida pública. Em 1999, quando este derrotou Netanyahu, Peres assumiu o posto de ministro do Desenvolvimento Regional. Barak não convidou Peres a participar das negociações de paz com Arafat em Camp David (2000) e em Taba (2001), o que foi considerado um erro grave por analistas políticos.
Em 2001, em outro governo de união chefiado por Ariel Sharon, Peres voltou a ser chanceler, cargo que manteve até 2005. Naquele ano, Peres teve de tomar uma das decisões mais polêmicas de sua vida política: a fim de fortalecer o Programa de Desconexão de Gaza, conduzido por Ariel Sharon, ele desfiliou-se do Partido Trabalhista (o qual liderava pela terceira vez) aderindo ao partido recém-fundado por Sharon, o Kadima. A criação do novo partido foi uma estratégia de Sharon para conseguir seguir com seu projeto adiante, e a entrada de um importante líder trabalhista como Peres provia sustentação ao partido, que assim não se configuraria apenas como uma ala descontente do Likud.
No Kadima, Peres nunca teve grande destaque político. Foi, simbolicamente, o vice-primeiro-ministro durante dois anos do governo Olmert, e ministro do Desenvolvimento Regional. Em 2007, Peres decidiu concorrer a presidente do Estado frente à renúncia de Moshe Katzav (investigado por violência sexual e preso posteriormente), e pela primeira vez venceu as eleições. Durante sua presidência, Shimon Peres fez questão de criticar a onda antidemocrática então crescente em Israel, especialmente em grupos da extrema direita. Este caminho foi seguido por seu sucessor, Reuven Rivlin. Peres também foi um dos presidentes que mais representou Israel no exterior, apesar de sua idade, corrigindo a má imagem deixada por Avigdor Lieberman (Israel Nossa Casa) durante sua gestão como chanceler. Peres, na realidade, mesmo sem poderes para exercer o cargo, dividiu informalmente a pasta com Lieberman no que se refere à representação do país no mundo. Deixou o posto em 2014, aos 91 anos, finalmente abandonando a vida pública.
Em 1993, no auge do otimismo provocado pelos Acordos de Oslo, Peres escreveu o livro “O novo Oriente Médio”. Nesta obra, Peres descreveu como a região poderia se desenvolver caso houvesse paz. Citou a abundância das riquezas naturais, a proximidade de metrópoles, o turismo que se poderia gerar e apostou na perspectiva inovadora das culturas orientais. Peres enxergava a Faixa de Gaza como a potencial “Hong Kong do Oriente” Médio, caso houvesse paz entre Israel e os palestinos.
O fato é que alguns o consideravam um romântico pois, até o AVC que o debilitou e tirou sua vida, ele sempre sonhou. Um pragmático sonhador e um estadista, gostemos dele ou não. Agora, lamentavelmente, nos resta a terceira geração, de pragmáticos demagogos como aquele que nos governa.
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Foto de capa: Defense Visual Information Distribution Service. https://www.dvidshub.net/
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