top of page

O Estado hebreu em perigo



Originalmente publicado em 30/09/2015, no Conexão Israel


Por Uri Avinery*


Tradução livre do artigo publicado no diário Haaretz em 09 de agosto de 2015. Leia o original aqui.


Após a 2º Guerra Mundial, eu participei de numerosas manifestações contra o Mandato Britânico, que governava a Palestina neste momento. Todas estas manifestações usavam o slogan: "Livre imigração! Por um Estado Hebraico!" O conceito de "Estado judeu" nos soava como algo paradoxal. Tudo o que pertencia aos judeus que viviam no Ishuv* era "hebreu". Tudo o que concernia aos judeus da Diáspora era "judaico". Eram agricultura hebraica, resistência hebraica (ao Mandato - N.T.), a primeira cidade hebraica. Por outro lado, eram a religião judaica, uma diáspora judaica, uma imigração judaica.


Pode-se folhear qualquer diário publicado aqui durante o Ishuv: a palavra "judeu", relativa a algo existente aqui, quase não aparecia. A linguagem cotidiana criou esta concepção muito antes do surgimento de um pequeno grupo de escritores e artistas, que a levou ao extremo. Este grupo, a quem com sarcasmo Avraham Shlonski  denominava "os Cananeus", proclamava que não existia a menor conexão entre nós e os judeus, éramos uma velha-nova nação, que saltou sobre dois mil anos da história da diáspora judaica.


Se é assim, por que ao proclamar-se em 1948 o Estado, falava-se de "um Estado judeu"? Para entendermos isso, devemos retornar àqueles dias. Ao olhos dos britânicos, dois povos ocupavam a Palestina: árabes e judeus. E a resolução das Nações Unidas de 1947 estabelecia a criação de dois Estados: um árabe e um judeu. A Declaração de Independência de Israel baseava-se diretamente nesta resolução, pela qual deveria ser anunciada a criação "de um Estado judeu, o Estado de Israel."


Naquela época, a religião estava em seu nadir mais absoluto na Terra de Israel. Quando jovem, eu morei por um tempo no moshav** Nahalal. Seus fundadores habitaram por anos em cabanas de madeira surradas. Quando puderam edificar casas de concreto, começaram construindo estábulos, e só posteriormente construíram melhores, apesar de modestas, casas para si. Depois edificaram uma fábrica comunitária produtora de leite, e então um Beit Ha’am*** (Casa do Povo). Havia também uma sinagoga, uma cabana pequena e remota, onde rezavam os anciãos. O sentimento geral era de que a religião judaica em Israel estava morrendo, e que esta morte seria definitiva quando os anciãos e anciãs que ainda a praticavam, morressem. O sionismo, creía-se, havia tomado o lugar da religião. 


David Ben-Gurion também pensava assim. Não fosse assim, ele jamais teria permitido que os estudantes das academias rabínicas fossem isentos do serviço militar, que ele considerava sagrado. A liberação de algumas centenas de rapazes vinha bem, pois lhe permitia resolver alguns problemas na sua coalizão. Foi pela mesma razão que ele permitiu que se estabelecesse um sistema público de escolas religiosas. O "velho" destruiu a rede de escolas dos trabalhadores, por ver nelas uma ameaça ao republicanismo, enquanto permitia as escolas públicas religiosas, por estar convencido de que a religião agonizava e não representaria perigo algum. O movimento kibutziano religioso (HaKibutz HaDati) recebia olhar amigável, uma espécie de filho adotivo do grande movimento kibutziano. E os ultraortodoxos, totalmente marginalizados, receberam, na melhor das hipóteses, um sorriso indulgente, como um fenômeno lamentável.


No fim dos anos 1950, a roda começou a girar ao contrário. Foi devido a vários processos independentes, independentes um dos outros, mas que tiveram um efeito acumulativo: em primeiro lugar, os horríveis acontecimentos do Holocausto começaram gradualmente a se revelar, e provocou no Ishuv um forte remordimento. Afinal, vivíamos aqui em (relativa) felicidade e riqueza, enquanto judeus eram assassinados em massa. Pouco depois, o julgamento de Eichmann causou uma mudança na mentalidade coletiva.


Outro acontecimento foi a massiva imigração de judeus de países árabes e islâmicos. Os que chegavam eram majoritariamente religiosos moderados ou tradicionalistas, como os também os muçulmanos em seus países. O rabino búlgaro em Jaffa ia de bicicleta aos sábados para assistir aos jogos de futebol do seu time. Porém, os rabinos orientais foram sequestrados pelos sicários rabinos lituanos, passaram a vestir-se como eles, e se radicalizaram. A elevada taxa de natalidade das populações religiosa e ultraortodoxa alterou gradualmente a demografia. A educação religiosa e ultraortodoxa não diminuiu, como Ben-Gurion esperava, mas expandiu-se a passos largos.


O ponto de inflexão foi a Guerra dos Seis Dias (1967). A assombrosa vitória das seculares Forças de Defesa de Israel (FDI) se transformou em uma festa religiosa. "O Muro Ocidental (das Lamentações) está em nossas mãos" passou a ser o grito de batalha dos religiosos fanáticos. A população judaica religiosa, até então humilde e retraída,e, tornou-se subitamente agressiva e demandante. O Partido Nacional Religioso (Mafdal), até então o partido mais moderado do governo, mudou completamente sua visão e tornou-se agressivo e dominante. Sua juventude, educada nas escolas religiosas e no Bnei Akiva****, deu lugar aos assentamentos radicais.


Ultimamente, estamos presenciando um novo fenômeno. No passado uma espécie de ruptura e até mesmo ódio separava a juventude nacionalista-religiosa dos ultraortodoxos. Agora eles começam a se conectar: os nacionalistas-religiosos se convertem cada vez mais em ultraortodoxos do ponto de vista religioso, e os ultraortodoxos passam a ser cada vez mais sicários do ponto de vista nacional.


As recentes atrocidades realizadas pela "Juventude das Colinas" (leia mais aqui) e por rapazes ultraortodoxos são crônicas de uma morte anunciada. A juventude dos assentamentos, junto aos perturbados novos convertidos à ortodoxia, estão imbuídos de uma motivação imensamente mais forte do que a dos membros da "bolha de Tel Aviv" e do resto do público secular.


Temos na história suficientes exemplos de grupos extremistas periféricos que tomaram o poder quando o centro se tornou fraco. Os extremistas estão acostumados à luta, enquanto no centro se produz cultura. A Prússia, uma afastada região e foco de um contínuo genocídio, tomou o poder na Alemanha. O remoto Piemonte assumiu o controle da Itália. O povo da Galileia tomou o poder em Jerusalém e causaram grande destruição. Os manchus tomaram o poder na China, os japoneses o controle da Ásia Oriental.


Um imenso perigo ameaça hoje Israel. Os colonos dos assentamentos não são lobos solitários nem jovens marginais. Constituem uma extrema e imediata ameaça a tudo o que foi construído neste país nas últimas gerações. O Estado Hebraico está desaparecendo, e um Estado judeu o está substituindo. E não é precisamente o judaísmo que se formou durante os dois mil anos de exílio, o judaísmo de Yochanan Ben-Zakai*****, o judaísmo de uma comunidade dispersa que aboninava a violência. Nós somos testemunhas agora de uma mutação do judaísmo, um novo judaísmo sicário, violento, e agora também assassino. Ele pode enterrar o Estado, da mesma forma que enterraram o Segundo Templo Sagrado.


Ainda estamos a tempo para salvar o Estado. Porém para isso acontecer, deve despertar a Israel verdadeira, secular, nacional - com coragem para evitar a calamidade.


*Uri Avinery é jornalista, ex-parlamentar e criador do grupo pacifista Gush Shalom.

-----------------------------------------------------

Foto de capa: O jornalista israelense Uri Avnery no momento de fundação de um novo partido pacifista. 08/06/1984, foto de Yoni Salinger.

------------------------------------------------------

*Ishuv (assentamento - tradução literal) é como chamamos tudo o que havia de judaico na Palestina antes da criação do Estado de Israel.

**Moshav é o nome dado às propriedades judaicas agrícolas coletivas, cuja organização permitia a individualidade e a propriedade privada, embora a terra pertencesse à comunidade.

***Beit Ha'am (Casa do Povo) é o nome que se davam aos centros culturais comunitários.

****Bnei Akiva é o nome do principal movimento juvenil da corrente sionista-religiosa, existente até hoje e com grande número de adeptos.

*****Yochanan Ben-Zakai é conhecido como o pai do judaísmo rabínico, uma vez que foi o responsável por negociar com o Império Romano a permanência da escola de rabinos de Yavne, após a Guerra Judaico-Romana (66-73), e que desencadeou na escrita do Talmud nos séculos seguintes.



Comments


bottom of page