Originalmente publicado em 25/07/2014, no Conexão Israel
A Operação Margem de Proteção se estende à sua terceira semana. Vale recordar ao leitor alguns antecedentes: a tensão com o Hamas se intensificou após o sequestro dos três jovens israelenses, seguida da operação de resgate efetuada pelas FDI, quando estas prenderam mais de 300 militantes (a maioria do Hamas), entre eles 54 dos que foram liberados em troca do soldado Gilad Shalit em 2011. Embora o Hamas não tenha assumido a autoria do sequestro e assassinato dos três jovens, o serviço secreto israelense diz ter certeza da participação do grupo que controla a Faixa de Gaza desde 2007. O grupo islâmico afirmou serem estas prisões um rompimento do cessar-fogo, firmado em novembro de 2012, e voltou a disparar foguetes contra o território israelense. A força aérea israelense bombardeou alguns pontos em Gaza, e os lançamentos de foguetes do Hamas intensificaram-se a ponto de chegar a 65 no intervalo de uma hora. Na madrugada do dia 8 de julho o governo israelense decide dar início à Operação Margem de Proteção, cujo objetivo declarado era retornar à tranquilidade que pairava nos dias anteriores.
O leitor mais informado certamente sabe que entre Israel e o Hamas nunca houve qualquer sinal de entendimento, por total falta de interesse das duas partes. Israel acusa o Hamas (com razão) de não reconhecê-lo e esforçar-se para destruí-lo por meio de ações terroristas, além de ter criado uma máquina de guerrilha em Gaza desde que se apoderou do local em 2007. O Hamas, fundado em 1987, jamais negou estas acusações, e afirma ter como objetivo claro destruir Israel e o sionismo, de modo que haja somente um Estado entre o Rio Jordão e o Mar Mediterrâneo: a Palestina islâmica. O grupo radical cresceu muito nos últimos anos, em virtude de um processo de moderação do seu principal adversário no campo político palestino: o Fatah. Tal processo levou grande parte dos radicais, ex-apoiadores do Fatah, a trocá-lo pelo Hamas, sobretudo após Yasser Arafat reconhecer o Estado de Israel. Além disso, há sérias acusações de corrupção atribuídas ao Fatah, bem como o de um governo com grande desigualdade social. O Fatah e o Hamas entraram em uma guerra civil em 2007, que resultou em uma divisão de poderes por localidades: um governa a Cisjordânia, enquanto o outro controla a Faixa de Gaza. Os territórios são bem distintos: em Gaza não há nem exército nem colônias israelenses desde 2005. Na Cisjordânia há exército, colônias e postos de controle. O que te parece pior? Por incrível que pareça, a situação em Gaza é bem desfavorável: um número (limitado) de palestinos da Cisjordânia tem permissão para trabalhar tanto nas colônias quanto do lado israelense da fronteira. Palestinos da Cisjordânia conseguem viajar para o exterior com muito mais facilidade, e há cooperação entre os governos de Israel e da Autoridade Palestina (AP). Na Faixa de Gaza há um bloqueio israelense-egípcio, que seleciona o que (e quem) pode entrar ou sair de Gaza, afirmando evitar a entrada de armas e qualquer equipamento que favoreça o terror. O bloqueio sem dúvidas afeta a economia de Gaza, ninguém nega o fato*.
Após a Operação Pilar Defensivo, em 2012, Israel afrouxou um pouco o bloqueio a Gaza, como parte do acordo de cessar-fogo. Metal pesado e concreto passaram a entrar na região em quantidades muito maiores, sob a alegação que o local precisava ser reconstruído após nove dias de bombardeios ininterruptos. Israel exigiu, em troca, que o lançamento de foguetes cessasse imediatamente, e que o Egito auxiliasse o país no bloqueio. A segunda parte do acordo não fora cumprida (embora firmada) até que Mursi fosse derrubado. O bloqueio, apesar de permitir a entrada de material de construção, intensificou-se ainda mais em 2013, na medida em que o novo governo egípcio considera o Hamas uma versão palestina da Irmandade Muçulmana, sua adversária. O novo presidente do Egito, Abdel Fatah al-Sisi, não tem o interesse em fortalecer o Hamas, e sim em aproximar-se do mundo ocidental. Em outras palavras, podemos afirmar que num espaço de pouco menos de um ano o Hamas recebeu uma quantidade enorme de aço e concreto, por um lado, e por outro, contava com a complacência do governo egípcio de Mursi. De um ano para cá, no entanto, o cerco aumentou, enquanto as negociações por paz entre Israel e a AP foram restabelecidas. O controle do Hamas na Faixa de Gaza enfrentava cada vez mais problemas econômicos, quando, ao mesmo tempo, o Departamento de Estado dos EUA pressionava o governo israelense e os palestinos para chegarem a um acordo. O Hamas, neste período, entrava em crise econômica e via a possibilidade de um governo palestino costurar um acordo de paz com Israel, que certamente não abarcaria um único Estado islâmico entre o Rio Jordão e o Mar Mediterrâneo. Isolado politicamente após a queda de Mursi, não restava ao Hamas muitas possibilidades para melhorar a sua situação se não conseguir um novo acordo com Israel. Mas o Hamas não pensa em reconhecer o Estado de Israel, nem sequer cogita sentar-se com Netanyahu e dialogar. O caminho para chegar a um novo acordo é a guerra, que provocará um cessar-fogo em algum momento, e parte das exigências do grupo serão postas à mesa.
Pouco importa se foi o Hamas ou não o principal mentor do sequestro e assassinato dos jovens israelenses. O fato é que o grupo beneficiou-se deste acontecimento para pressionar Israel. A partir do momento em que Israel iniciava suas ações de resgate, foguetes voltaram a cair constantemente em solo israelense. Tais foguetes pareciam ser a nova arma do Hamas. No início da década passada, o grupo utilizava homens-bomba, que explodiam-se em atentados suicidas em áreas urbanas de Israel, levando consigo vítimas fatais. Como resposta, Israel fechou as fronteiras. O Hamas, então, investiu no lançamento de foguetes: até 2007, estes praticamente só atingiam a cidade de Sderot e os kibutzim (plural de kibutz) ao redor de Gaza; na Operação Chumbo Fundido chegavam já a Ashdod, Ashkelon e Beer-Sheva, e em 2012 já ameaçavam Tel-Aviv e Jerusalém. Israel, então, desenvolveu o sistema Domo de Ferro para interceptar estes foguetes (que hoje já são capazes de atingir Haifa, no norte). O Hamas, então, decidiu investir em túneis subterrâneos. Estes não são, de forma alguma, uma novidade. O Hezbollah já os usa desde a década de 1980. A série televisiva "Prisioneiros de Guerra" (que será transmitida pela TV a cabo no Brasil), inspiradora de Homeland, já tratava deste tema com uma história iniciada nos anos 1980. O próprio Hamas já utilizou túneis em diversas ocasiões, a mais famosa quando sequestrou o próprio Gilad Shalit. O que surpreendeu, desta vez, parece ser a cidade subterrânea que o Hamas construiu, com grande parte do aço e concreto que chegou a Gaza entre 2012 e 2013. Pouco importam os nove mil foguetes que as FDI estipulam que o Hamas tivesse em mãos: uma hora eles terminarão, e o perigo real que eles representam à população israelense já não é mais tão grande como era antes do Domo de Ferro. Mas os túneis, sim, representam grande perigo. Há um grande número de kibutzim e pequenas vilas espalhados ao redor da Faixa de Gaza. Estipula-se que vivam nesta região em torno de 20 mil pessoas. Minha esposa, até o ano passado, trabalhava justamente em seis destes kibutzim. Minha sogra trabalha em outro deles. Tenho amigos com famílias vivendo ali, também. Imagine você o que 15 terroristas, como nos mostram o vídeo abaixo, poderiam fazer neste local.
Foram já quatro tentativas, todas elas percebidas a tempo pelas sentinelas do exército. Em uma delas, os terroristas trajavam fardas militares, a fim de confundir o próprio exército. Por sorte a soldada encarregada percebeu algo estranho e avisou ao alto comando, que os abateu. Frente a esta ameaça, Bibi Netanyahu e seu gabinete, que já haviam evitado por dez dias uma operação terrestre, decidiram invadir Gaza. O objetivo passou a ser destruir os túneis subterrâneos. Estipula-se que haja 60 túneis dentro de Gaza, mais do que, aparentemente, a inteligência do exército supunha. A maioria deles tendo como destino final o território israelense. O exército já identificou 35 e destruiu 25 deles. A força aérea, a marinha e os canhões posicionados na fronteira não podem dar conta da destruição destes túneis. Os norte-americanos disponibilizaram sua tecnologia (já adaptada para o modelo israelense, mas com custo altíssimo), mas somente após o início da ofensiva israelense. Já morreram 32 soldados e oficiais israelenses desde a ofensiva terrestre, e a quantidade de palestinos mortos por dia é o dobro do que antes da invasão (400 dos 800 mortos até agora, em metade dos dias). Analistas israelenses não estabeleceram um consenso: queria Netanyahu invadir Gaza por vias terrestres? Alguns creem que sim, que estava apenas esperando um bom motivo e os túneis caíram como uma luva. O Primeiro Ministro, que trabalha a sua imagem de “defensor da segurança nacional”, sabe que em Israel, numa situação destas, medidas enérgicas e repressivas são populares. Uma pesquisa do Canal 2 de televisão mostrou dados interessantes: enquanto 53% da população rejeitava o iminente cessar-fogo na véspera do início da operação terrestre (contra 35%), 65% apoiavam a forma como Netanyahu direcionava a operação (contra 28%). Há uma contradição aí: se o Primeiro Ministro estava a ponto de assinar um cessar-fogo impopular, como pode ser que sua forma de lidar com o conflito seja aprovada pela maioria da população? Outro número nos deixa ainda mais confusos: 55% da população era a favor do início de uma operação terrestre, (contra 32%). Ou seja: Netanyahu não fazia o que a maioria queria, mas para a maioria agia bem. Isto, talvez, justifique a opinião de outros analistas (e eu estou mais inclinado a concordar com eles), de que Netanyahu não desejava um prolongamento terrestre da operação, mas viu-se em uma encruzilhada quando as imagens dos túneis começaram ser mostradas à toda a população pelas emissoras de televisão. Netanyahu sabe que será questão de tempo até o Hamas reconstruir os túneis que as FDI destruirão agora. Além disso, sabe que necessita de um grande número de reservistas, que representam um altíssimo custo para um governo que enfrenta um déficit no orçamento. Outro agravante, são as vidas de soldados em risco, algo que em Israel não se difere muito de civis em risco, uma vez que o serviço militar é obrigatório e universal, e parte do contingente é de reservistas, muitas vezes pais e mães, que deixam suas famílias apreensivas nestes momentos. Outro fator a ser pesado é o fato de que a opinião pública mundial certamente se voltará contra Israel (pelo menos parcialmente), o que representa um problema para as relações exteriores. Por fim, mas não menos importante, há o risco de termos um soldado sequestrado, o que, politicamente, seria um desastre. E não parece ser segredo que esta é uma das grandes motivações do Hamas para atrair o exército para dentro da Faixa de Gaza.
Os túneis, de fato, amedrontam e representam grande perigo para os civis israelenses. A destruição destes túneis, no entanto, nos trarão alguma garantia de paz, segurança ou ao menos calma? O consenso é de que, por si só, não. Todos sabemos que o cessar-fogo com o Hamas é temporário, as operações militares não garantem absolutamente nenhuma calma por mais que alguns poucos meses. Quais seriam, então, os possíveis desfechos para este conflito atual? O que querem os dois lados num eventual cessar-fogo? O presidente egípcio apresentou uma proposta de cessar-fogo dois dias antes da operação terrestre, que agradou a Israel, aos EUA e à AP: voltaríamos todos ao acordo de 2012. O Hamas batia o pé, não estava disposto a aceitar que Israel e o Egito mantivessem o bloqueio restrito como é, e exigia a soltura dos presos capturados nas buscas pelos três jovens, há mais ou menos um mês. Os dois lados não entraram em um acordo. O Hamas não confia no Egito como interlocutor, e Israel não confia na Turquia, outro que se ofereceu para mediar os dois lados. O Qatar aparece como possível personagem neste cenário. O secretário de Estado dos EUA, John Kerry, esteve recentemente em Israel, e afirmou que o cessar-fogo não parece estar próximo de concretizar-se. O líder militar do Hamas, Khaled Mashaal, afirmou nesta quarta-feira que está pronto para um cessar-fogo imediato, desde que Israel dê fim ao bloqueio. Isto nos mostra que o Hamas sente-se realmente prejudicado pelo cerco marítimo e terrestre feito por Israel e Egito. A economia aparentemente está em ruínas, a ponto de o líder do Hamas “esquecer-se” de sua exigência anterior em relação aos presos. Israel, por suposto, não pretende de forma alguma aceitar esta reivindicação, pois a enxerga como um facilitador para que o Hamas adquira mais armas para o próximo confronto. Israel exige que o Hamas volte aos princípios de 2012, mas não assinará nenhum cessar-fogo antes de destruir todos os túneis existentes, mesmo que isto comprometa mais vidas.
Netanyahu em nenhum momento falou em derrubar o Hamas do poder. Segundo especialistas, os movimentos ISIS e Jihad Islâmica são muito mais radicais, e o governo parece adotar o princípio “ruim com o Hamas, pior sem eles”. Uma fonte do exército disse ao jornal Haaretz que Ismail Haniyeh, chefe do braço político do Hamas, não é um alvo das FDI. Há rumores de que o governo israelense esteja preparando-se para negociar com o Hamas a longo prazo. São apenas rumores, enfatizo. Mas há algo distinto na situação atual. A União Europeia recomendou, como parte do cessar-fogo, que Gaza seja desarmada. Desta forma Israel poderia cogitar afrouxar o bloqueio. Evidentemente o Hamas recusa a proposta, uma vez que o movimento vê no conflito a única forma de avançar em seus objetivos. Esta, no entanto, me parece uma boa alternativa para um acordo razoável de cessar-fogo. É curioso como ninguém propõe para Gaza o que já deu certo antes: tropas da ONU na região. Entre 1956 e 1966, os capacetes azuis ocuparam a Faixa de Gaza, período considerado de tranquilidade pelos dois lados. Israel necessita de soluções razoáveis, e, caso estas não sejam possíveis com o Hamas, deve-se buscá-las com outros parceiros. Chegar a um cessar-fogo com o Hamas não representa absolutamente nada, enquanto Israel não chega a uma solução para o conflito com a AP. Israel necessita chegar a um acordo com os palestinos moderados, incluí-los nos acordos de cessar-fogo, e fortalecê-los. A melhor alternativa para que todos nós, israelenses e palestinos, não soframos com foguetes, bombardeios, atentados e destruição a cada tantos meses, é chegar (a) em um acordo. As operações militares não trazem paz, trazem um cessar-fogo. Esta é a forma conveniente ao Hamas de atuar no jogo político. Nós entramos nessa, sem perceber que perdemos muito mais do que ganhamos. E vamos caminhando, de cessar-fogo em cessar-fogo, fortalecendo a participação do Hamas no campo político, e perdendo vidas, estabilidade e esperança.
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*O bloqueio israelense à Gaza é legal de acordo com a Convenção de San Remo (1995). Veja aqui em espanhol ou em inglês. Organizações de direitos humanos questionam a duração do bloqueio mesmo durante os períodos de cessar-fogo, algo não estipulado pela convenção.
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Foto de capa: Israel Defense Forces Spokesperson Unit. 20/07/2014.
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