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O Hamas está de volta à Jerusalém

       



Originalmente publicado em 24/11/2021, no Conexão Israel

            

Nesta semana, vivenciamos dois atentados terroristas em Jerusalém, cometidos por pessoas ligadas ao Hamas (o grupo assumiu a autoria de ambos). Os dois atentados possuem diferenças essenciais, e isso é o que preocupa, em especial se as analisarmos em conjunto com as suas semelhanças: enquanto o primeiro, um atentado à facada, foi cometido por um jovem, um lobo solitário como se diz, sem que fosse algo premeditado, o segundo atentado foi feito com disparos, detalhadamente planejado, incluindo o fato de que a família do terrorista tenha fugido para a Jordânia premeditadamente. As semelhanças, no entanto, vão além de o fato de o Hamas ter assumido a autoria dos dois atentados. Os dois autores eram entusiastas do Hamas (o segundo era membro do braço político da organização), e reproduzem a nova estratégia do grupo islamista: ferver o caldeirão de Jerusalém oriental e da Cisjordânia como um todo, com o objetivo de desestabilizar a Autoridade Palestina (AP) de Mahmmoud Abbas e tomá-los de assalto. E o pior de tudo é que o vácuo ocupado pelo Hamas deriva essencialmente de uma política consciente de Israel para os territórios. Em outras palavras, o Hamas está colhendo os frutos plantados por Israel.


Antes de qualquer coisa, vamos ao contexto histórico. Em maio deste ano, houve uma guerra entre Israel e o Hamas e a Jihad Islâmica na Faixa de Gaza. As tensões começaram motivadas por duas situações: a remoção de moradores palestinos do bairro de Sheikh Jarrah, em Jerusalém oriental, e o impasse envolvendo as eleições palestinas. Eu me concentrarei no segundo elemento, que segue relevante até agora. Mahmmoud Abbas havia convocado eleições parlamentares para a AP para o mês de maio, algo que não ocorre desde o longínquo ano de 2006. As pesquisas de intenção de voto apontavam para um enfraquecimento do Fatah, partido de Abbas, que comanda a AP desde a sua criação em 1993, e um crescimento de partidos de oposição, sendo o principal deles o Hamas. Houve um impasse entre o governo israelense (então comandado por Netanyahu) e a AP com relação a Jerusalém oriental: por um lado, Israel considera a parte oriental da capital como território soberano do Estado judeu, mas por outro lado sabe-se que os cidadãos árabes dessa região não possuem cidadania israelense. Os árabes de Jerusalém oriental têm, em sua grande maioria, passaporte palestino, e gozam de direitos específicos previstos nas leis municipais de Jerusalém, mas não têm direito, por exemplo, a participar das eleições para a Knesset. Os palestinos — e a comunidade internacional como um todo — não reconhecem a soberania israelense sobre Jerusalém oriental, e por isso exigiram de Israel que permitisse aos partidos que concorreriam nas eleições a fazer campanha na cidade. O governo israelense não desejava ter sua soberania sobre a cidade questionada, muito menos ver membros do Hamas e de outros partidos que não reconhecem Israel fazendo campanha livremente pela capital do país. Assim sendo, Abbas juntou o útil ao agradável e adiou indeterminadamente o pleito legislativo. E o Hamas não gostou, quis mostrar força e desafiou Israel. O resto vocês já sabem.


O conflito entre Israel e o Hamas tocou pontos sensíveis que despertaram cidadãos palestinos e árabes de cidadania israelense a rebelar-se contra o Estado judeu. Movimentos violentos, sobretudo organizados por gangues de orientação nacionalista palestina, foram vistos nas ruas de cidades mistas de Israel, além de cidades e vilarejos árabes. O Hamas conseguia pela primeira vez em 20 anos despertar a ira do povo palestino, seja ele cidadão israelense ou não, contra o Estado de Israel. O clima foi ainda mais tenso que em 2015, na chamada “intifada das facas”. Naquele momento, os ataques eram feitos principalmente em Jerusalém, à base de facadas e atropelamentos — em sua maioria por jovens, incitados pelo discurso do Hamas, contra cidadãos israelenses — sem planejamento prévio. Durou alguns poucos meses, até que a tranquilidade foi restabelecida. Não houve, no entanto, movimentos de massas, multidões nas ruas nem bandeiras do Hamas. Isso foi visto em maio deste ano, e está sendo visto agora. Embora não possamos chamar os atentados recentes de “onda”, temos motivos de sobra para nos preocuparmos com o que eles podem representar.


Desde o fim da guerra de maio (Operação Guardiões das Muralhas), as tensões com o Hamas permaneceram no ar, sobretudo na região fronteiriça com a Faixa de Gaza. Foguetes foram disparados, protestos foram feitos próximo à cerca de separação (com mortos dos dois lados), bombardeios israelenses foram realizados, pipas incendiárias foram levantadas… O novo governo israelense e o Hamas divergiram em diversos aspectos e custaram a entrar em acordo sobre os termos do cessar-fogo. Até que não houvesse solução para a maioria das questões levantadas, a tensão permanecia no ar. Mas como tudo se dava na Faixa de Gaza e na região da fronteira sem uma grande escalada, não houve grandes preocupações. As coisas foram se acertando, Israel e o Hamas foram entrando em acordo mediados sobretudo pelo Egito. Sob pressão do novo governo dos EUA, o Ministério da Defesa israelense concedeu até mesmo permissão para cerca de 10 mil palestinos de Gaza trabalharem em Israel. Uma escalada em Gaza é tudo o que Israel e o Hamas não desejam agora. O novo governo israelense precisa de sossego para apresentar resultados, e tem pavor de que um conflito em Gaza possa implodir a coalizão, totalmente heterogênea em relação à posição dos partidos que a compõem no que diz respeito ao conflito. E o Hamas precisa reconstruir a Faixa de Gaza, garantir que seus funcionários públicos sejam pagos com o dinheiro que vem principalmente do Qatar, e preservar as vidas de seus militantes. Isso é o suficiente para, por agora, não haver clima para outra guerra em Gaza.


Isso, no entanto, não vale para a Cisjordânia e Jerusalém. Se Israel, por um lado, não tem interesse em uma escalada nesta região, o Hamas, por outro, pode ter. O grupo saiu fortalecido politicamente depois da guerra: em março de 2021, 37% dos palestinos apoiavam a luta armada contra Israel contra 56% que apoiavam caminhos pacíficos. Em junho, apenas três meses depois, já eram 49% os que manifestavam preferência pela luta armada contra 45% que optavam por outros meios. O Hamas saiu da guerra de maio como o defensor de Jerusalém, enquanto o Fatah, que já não via a sua popularidade sequer aproximar-se da de outrora, teve sua debilidade e insignificância na luta contra a ocupação exposta como nunca. Como se não bastasse, Abbas reprimiu fortemente protestos organizados contra o seu governo na Cisjordânia após um dos mais populares opositores ao seu partido, Nizar Banat, ter sido morto enquanto encontrava-se nas mãos da polícia palestina. O Fatah, vale lembrar, reconhece o Estado de Israel, seu governo é reconhecido internacionalmente e a Autoridade Palestina, inclusive, colabora com as forças de defesa de Israel para evitar atentados terroristas contra as populações judaicas. Uma matéria do jornal Maariv, de 2018, aponta que a Autoridade Palestina ajudou a evitar cerca de 40% dos atentados que seriam cometidos contra Israel.


O sucesso do Hamas é o fracasso do Fatah, e a cooperação com Israel é constante há mais de uma década. O braço armado do Fatah, inclusive (Brigada de Mártires de Al-Aqsa), ainda que não tenha renunciado oficialmente à luta armada, há anos não realiza atentados contra civis israelenses.


Se a cooperação com o inimigo possa fazer com que o Fatah seja mal visto por parte significativa da sociedade palestina, ela tampouco é suficiente para que os últimos governos israelenses os tenham tratado como um potencial parceiro. Por um lado, é verdade que o Fatah faz esforços contínuos para pressionar a comunidade internacional a condenar Israel pela ocupação de todas as formas possíveis, o que jamais seria visto como “amigável” por nenhum governo israelense. Por outro lado, a opção escolhida pelos governos comandados por Benjamin Netanyahu de 2009 a 2021 foi a de boicotar o Fatah, enfraquecê-los, e até humilhá-los, mesmo que para isso fosse necessário fortalecer o Hamas. Netanyahu jamais moveu uma palha em direção ao restabelecimento das negociações pela criação de dois Estados, simplesmente por ser contrário a esta ideia. Bibi e a direita secular israelense, de forma geral, são partidários da doutrina de administração do conflito. São contrários à criação do Estado palestino por questões ideológicas e de segurança, mas ao mesmo tempo sabem que os árabes que vivem nestes territórios não vão a nenhum lugar. Então, o melhor que pode acontecer é administrar a ocupação e o conflito, inevitável, porém menos perigoso do que outrora. A estratégia de Netanyahu, assim, foi fortalecer o Hamas a fim de convencer o eleitorado e a comunidade internacional de que um acordo com o Fatah não pode garantir a segurança de Israel a longo prazo. O amedrontamento da população é uma arma muito utilizada pelo ex-primeiro-ministro, e não há parceiro melhor do que aquele que faz com que sirenes de guerra acordem você e seus filhos no meio da madrugada, obrigando-os a correr para um abrigo. O Fatah te dá moderação e cooperação e te pede, em troca, negociações. Israel aceita a moderação e a cooperação, mas não dá ao Fatah nenhuma esperança de que o seu caminho possa gerar resultados. Isso fortalece o Hamas.


Assim, aos poucos, o Hamas, isolado desde 2007 na Faixa de Gaza (leia mais sobre isso aqui) vai recuperando espaço na Cisjordânia. Além de Hebron, a capital do Hamas na região e onde o movimento sempre foi forte, o Hamas se fortaleceu em cidades como Jenin, Ramallah e Jerusalém. E nesta última, as oportunidades são ainda maiores ao movimento islamista sunita. Jerusalém oriental, ainda que tenha sido anexada por Israel no início dos anos 1980, não recebe o mesmo tratamento da prefeitura que a parte ocidental da cidade (ou até mesmo do que os bairros judaicos na parte oriental). Há serviços que não chegam nestes locais — do ponto de vista urbanístico, parecem duas cidades diferentes. As ruas dificilmente são pavimentadas, há lixo espalhado por toda a parte, a pobreza é incomparável entre as duas partes da cidade. É verdade que parte dos habitantes de Jerusalém oriental recusam receber os serviços fornecidos pela prefeitura, em protesto contra a normalização da ocupação. Mas o que acontece primordialmente é que Israel não fornece os serviços necessários seja lá por quais razões, mas tampouco permite que a Autoridade Palestina o faça. E fica um vácuo, onde nenhum poder público entra, e isso contribui para a pobreza da população, para o antagonismo total frente ao Estado de Israel e a AP e para a emergência de um poder paralelo. E é aí que entra o Hamas.


É bem verdade que o novo governo israelense tem tentado criar canais de parceria com a AP, a aproximação nestes primeiros meses é muito maior do que durante todo o período Netanyahu. Se bem sabemos que as negociações por dois Estados dificilmente acontecerão, pois há elementos no governo radicalmente contrários à ideia - sobretudo o atual primeiro-ministro, Naftali Bennett -, vemos que o governo tem tentado ajudar a AP de diversas formas, sobretudo financeira. Liberou crédito, aumentou as licenças para a entrada de trabalhadores palestinos em Israel, deu alvarás para a construção de unidades habitacionais em regiões C da Cisjordânia, entre outras coisas. Ministros do governo atual, incluindo o ministro da Defesa, Benny Gantz, e o ministro da Saúde, Nitzan Horowitz, visitaram o presidente da AP Mahmmoud Abbas e mantêm conversas com seus similares sobre diversas questões, uma mudança dramática em relação ao governo anterior. No entanto, nada disso tem sido suficiente para evitar a expansão do Hamas na Cisjordânia e em Jerusalém oriental.



Para frear a expansão do Hamas, é fundamental que o governo israelense dê à AP uma esperança real de que uma mudança radical e positiva possa suceder, e, convenhamos, isso não acontecerá. Não há sequer negociações em andamento, há assentamentos sendo construídos na Cisjordânia e o primeiro-ministro de Israel até pouco tempo atrás fazia propaganda abertamente favorável à anexação por Israel dos territórios C, que representam mais de 60% do território da Cisjordânia. Enquanto isso, o Hamas incita, organiza ações e mostra a que veio. E é por isso que os atentados desta semana são tão significativos. Um deles é resultado da incitação de um jovem que decidiu atuar por conta própria (algo que a inteligência militar israelense não tem condições de prever), o outro é um atentado planejado minuciosamente por um membro do braço político do movimento — aquele do qual não se espera ações violentas. Os atentados organizados estão de volta, e a prova final veio nesta terça-feira: as forças de defesa de Israel descobriram um depósito de armas e explosivos do Hamas em Jerusalém oriental, com pistolas, fuzis e cintos explosivos para atentados suicidas, tal qual víamos durante a Segunda Intifada. Mais de 50 membros do Hamas, envolvidos com o depósito, foram presos nesta operação. Mas já foi o suficiente para observar que o Hamas voltou a trabalhar na Cisjordânia organizando atentados. E a pergunta é: por que justo agora?


As eleições foram adiadas, mas não poderão ser canceladas para sempre. Se não houver eleições, o povo palestino, insatisfeito com o governo, derrubará o Fatah do poder mais cedo ou mais tarde. O Hamas tenta controlar o tempo, manipulá-lo para que as coisas aconteçam o mais depressa possível, para não dar chance ao azar. Seu momento de popularidade é agora, e não se sabe quando outra janela de oportunidades será aberta. Para derrubar o Fatah — ou obrigá-los a convocar eleições — não há melhor maneira do que causar distúrbios, ferver a Cisjordânia e Jerusalém, criar conflitos, forçar a repressão israelense a se intensificar e, assim, criar tensões entre Israel e a AP. E o governo israelense segue lidando com a questão como se fosse um problema estritamente de segurança, resolvido por meios militares. Netanyahu deixou uma bomba-relógio nas mãos do novo governo, que não tem personalidade nem objetividade para enfrentar uma questão deste tamanho e com tal complexidade, como corresponde. Se não houver uma percepção rápida do tamanho do problema que temos pela frente, podemos vivenciar a maior tensão entre Israel e os palestinos dos últimos 20 anos, com seu epicentro em Jerusalém.

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Foto de capa: Transferred from de.wikipedia to Commons by Ervaude using CommonsHelper. Own work. Foto de Hoheit.


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