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O futuro sombrio de Israel



Publicado originalmente em 29/07/2016, no Conexão Israel


O título é este mesmo, leitor. Não se engane. E nem me chame de exagerado, nem de profeta do apocalipse. O governo atual optou, como cantou a pedra Ury Avineri recentemente, por afastar-se gradualmente do sionismo. Não sei se é por opção, por ingenuidade ou pura irresponsabilidade. Mas o faz. E não me refiro à expansão “natural” dos assentamentos, que compromete a maioria judaica no Estado de Israel. Não é o crescimento vegetativo da população árabe quem ameaça a questão demográfica em Israel, desta vez. São judeus. Judeus não sionistas, às vezes antissionistas. Que, em sua maioria, não se importam com ser parte do Estado, e nem se preocupam com sua segurança. São judeus ultraortodoxos, que participam de quase todos os governos eleitos democraticamente no país. E que foram confrontados há três anos pelo partido Yesh Atid, o primeiro em muito tempo que tentou cortar as asas desta ameaça. O público ultraortodoxo não é uma minoria nacional, como são os árabes, mas possui direitos semelhantes. Com uma diferença: recebe benefícios especiais para estar isento de obrigações estatais. E, com estes benefícios, constroem um Estado dentro do Estado de Israel, cada vez mais separado e com leis próprias. E crescem assustadoramente.


Antes de qualquer coisa, quero dizer que eu não tenho absolutamente nenhuma objeção a forma como cada um escolhe professar seu judaísmo. A escolha individual é um direito, e eu não a julgo negativa ou positiva. Minha objeção é quando um grupo religioso se organiza politicamente e busca privilégios por meio de coalizões governistas. Privilégios únicos, diga-se de passagem. Além da isenção de obrigações. Privilégios que afetam o dia-a-dia de outros, que não escolheram sofrer as consequências destes privilégios. Grupos que usufruem da democracia para restringir a própria democracia, e beneficiar-se da desigualdade legal quando a balança, obviamente, tende a seu lado. Tudo isso em nome da separação e da divisão, como mostra o vídeo abaixo.



No domingo (23 de junho), a Knesset aprovou uma exigência do partido Judaísmo da Torá, de cancelar a lei que condicionava a recepção de recursos estatais às escolas que ensinassem as disciplinas que o Ministério da Educação considerou “básicas”. Parece algo severo e autoritário? Engano. Os recursos estatais são destinados às escolas públicas (!), e as regras do Ministério da Educação eram que tais escolas incluíssem entre suas disciplinas obrigatórias o estudo de hebraico, literatura, matemática, ciências, entre outras matérias. Ou seja: há escolas públicas que não oferecem aos alunos as disciplinas básicas, cujo ensino é obrigatório por lei, e ainda assim recebem recursos do Estado. E pior! Recebem proporcionalmente mais que as outras! Em outras palavras: o contribuinte israelense que trabalha, serviu o exército e é reservista, que tem (ou terá dentro de alguns anos) seus filhos no exército, paga impostos para que uma parcela da população que trabalha menos que a média, paga menos impostos, recebe benefícios do Estado para estudar em academias rabínicas e tem um percentual quase insignificantes de alistamento militar, receba um investimento desproporcional para que seus filhos gozem de uma educação que não os prepare para que sejam inseridos no mercado de trabalho, e sim para seguir recebendo estes benefícios e mantendo seu status privilegiado por gerações.


Segundo o Instituto Israelense de Democracia, os ultraortodoxos (charedim) em 2014 eram cerca de 9% da população judia israelense. No mesmo ano, o percentual de alunos nas escolas ultraortodoxas dentro da rede pública judaica era de mais de 17%. Como mostra uma reportagem do jornal israelense The Marker, os alunos das escolas ultraortodoxas ligadas aos partidos Judaísmo da Torá e Shas, recebiam em 2012 uma média por aluno de quase o dobro do que recebiam os árabes e consideravelmente maior do que os alunos de escolas judaicas seculares. Em 2013 o então ministro da Educação Shay Piron (Yesh Atid), judeu ortodoxo moderno, decidiu mudar esta situação: as escolas ultraortodoxas receberiam integralmente verbas estatais apenas se cumprissem com as exigências do Ministério da Educação: devem ensinar as disciplinas básicas, ou nada feito. Neste ano, o partido Yesh Atid, através de uma manobra política de seu líder, Yair Lapid, conseguiu pela primeira vez em muitos anos deixar os dois partidos ultraortodoxos de fora da coalizão governista. Lapid considerava que o Estado de Israel, ao ritmo que cresce a população ultraortodoxa, caminhava para um futuro sombrio. Não por causa da escolha individual dos ultraortodoxos de aterem-se à religião de forma estrita e tradicional, e sim pela sua tendência em isolar-se do resto da população de forma extrema, evitar o contato de suas crianças e adolescentes com o “mundo profano”, e por recusar-se a cumprir com deveres básicos para com o Estado que (quase) todo o resto da população cumpre. O partido Yesh Atid, então, iniciou uma série de reformas legais e medidas no executivo com o objetivo de inserir a população ultraortodoxa na sociedade israelense. A educação foi um dos meios considerados essenciais para estas mudanças. Shay Piron não propôs nenhuma revolução, como mesclar os três tipos de escolas judaicas, ou obrigar que meninos e meninas estudassem juntos nas mesmas salas de aula. Suas medidas eram bem mais modestas: que os ultraortodoxos estudem as disciplinas básicas, e que estejam todos matriculados em escolas até o fim do ensino médio. Algo básico em qualquer país do mundo, como no Brasil.


Dois anos depois, o Yesh Atid teve seu número de cadeiras reduzido nas eleições, e perdeu seu lugar no governo para os ultraortodoxos. O ministro Shay Piron foi substituído por outro ortodoxo, o líder do partido A Casa Judaica, Naftali Bennett. À diferença de Piron, Bennett não parece fazer questão de inserir os ultraortodoxos na sociedade israelense. Parece não se importar com o caminho isolacionista desta população, tal qual o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu (Likud), que acordou o cancelamento das medidas adotadas por seu governo anterior com os partidos ultraortodoxos que compõem a sua base. Nem todo o gabinete aprovou a medida, no entanto. O ministro de Ciência e Tecnologia, Ofir Akunis, deixou a reunião pela metade, revoltado com a decisão, a qual considerou um “erro”.


A decisão, obviamente, gerou polêmica. O site Ynet realizou um debate entre o Haim Rubinstein, ex-ortodoxo, que abriu um processo contra o Estado por não fornecer-lhe a educação básica para encarar a vida fora do “gueto” ultraortodoxo, e o rabino Benny Rabinovitch, que defende o direito de cada parcela da população decidir o que seus filhos estudarão na escola. Rubinstein afirma que seu currículo é descartado por qualquer empresa quando observam sua formação escolar, e alega que o objetivo dos ultraortodoxos, ao não ensinar as disciplinas básicas, é impossibilitar o sucesso daqueles que decidem abandonar o modo de vida ultraortodoxo. Rabinovitch afirma que uma série de ultraortodoxos todos os anos acessam o ensino superior em Israel, prova de que isso não é verdade. O que o rabino “esqueceu-se” de mencionar é que estas pessoas se formam majoritariamente em institutos acadêmicos ultraortodoxos, e, ainda assim, em um percentual bem menor que a população secular e ortodoxa moderna israelense.


Grande parte dos ultraortodoxos afirmam defender direitos individuais de viver onde quiserem, com quem quiserem, e de acordo com o estilo de vida que escolherem. Meu contraponto é que estas escolhas deixam de ser individuais quando o seu lado recebe apenas os direitos, e não os deveres. Da mesma maneira que os ultraortodoxos possuem profissões nos EUA e na Argentina, deveriam trabalhar também em Israel. Se o exército é obrigatório para mim, deve ser para eles também. Se eu não tenho o direito de exigir quem estará ou deixará de estar na base militar onde eu sirvo, eles tampouco deveriam ter este direito. Já basta que a comida seja kasher para todos, até mesmo para os soldados não-judeus. E se o Estado decide que as crianças seculares devem estudar a Bíblia Hebraica (Tanach), também deve decidir que as crianças religiosas devem estudar ciências. Não faz sentido que o Estado de Israel permita que uma parcela da população possua tantas isenções, se sua intenção é separar-se cada vez mais do resto da população, além de aprovar leis que coagem ao resto da população a cumprir com mandamentos religiosos. Como se não bastasse o não reconhecimento do Estado às correntes judaicas não ortodoxas, o monopólio administrativo que eles possuem sobre o rabinato, que exerce grande influência sobre a população do país. Israel, a maior democracia do Oriente Médio, é o único país onde uma mulher judia não pode usar um Talit em um lugar público (Muro das Lamentações), pois neste caso a escolha individual não é aceita pelos ultraortodoxos. E o governo atual parece retroceder mais ainda, ao aceitar que as escolas públicas do país recebam verba para funcionar como na Idade Média.


Já se foi o tempo em que a ciência e a cultura eram desprezadas. A educação pública tem como objetivo, em qualquer lugar do mundo, preparar um cidadão consciente da realidade do país e pronto para assumir os seus desafios. Em Israel, parece que não. No país onde o povo do livro é maioria, a parcela separatista da religião tem o direito de privar suas crianças de conhecimentos básicos. Há 68 anos eles eram menos de 1% da população. Hoje são 9%, mas as crianças já são cerca de 20% dos alunos da rede pública. Se continuarmos cultuando a ignorância, o futuro será sombrio quando esta minoria tornar-se maioria.


Fontes não citadas no corpo do texto:



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