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O discurso da resistência



Originalmente publicado em 04/05/2016, no Conexão Israel


No dia em que os israelenses recordam o Holocausto e o heroísmo, lhes brindo esta tradução livre do depoimento de Zivia Lubetkin sobre a Shoa e o Levante do Gueto de Varsóvia, feito no Congresso do movimento kibutziano (Kibutz HaMeuchad) em Yagur, 8 de junho de 1946.  Retirado do livro “אנו מכריזים בזאת: 60 נאומים נבחרים בתולדות ישראל” (Nós aqui declaramos: 60 discursos escolhidos na história de Israel), organizado por Anita Shapira. Editora Kinneret (2008), Zmora Bitan, Dvir.


Zivia Lubetkin, nascida na cidade de Byten (antes Polônia, hoje Bielorrússia), foi membro do movimento juvenil Dror, e uma das líderes do Levante do Gueto de Varsóvia (1943). Zivia e seu marido, Itzhak (Antek) Zuckerman sobreviveram o Holocausto e imigraram à Palestina em 1946. Fundaram e viveram no kibutz Lochamei HaGuetaot (Guerreiros dos Guetos), onde se casaram e tiveram dois filhos, Shimon e Yael. Sua neta Roni Zuckerman foi a primeira piloto da aeronáutica israelense em 2001. Em 1961, Zivia testemunhou contra Adolf Eichmann em Israel, no julgamento que culminou na condenação do nazista à pena de morte. Zivia Lubetkin faleceu em 1976.


Por doze anos sonhei em fazer aliá (imigrar para Israel). Muitos de vocês certamente se lembram como foi o seu primeiro momento na Terra de Israel, com seus amigos, com o kibutz. Não obstante, vocês não são capazes de imaginar o que significa este momento para mim, pelo que eu vivi nestes últimos seis anos. Tampouco imaginaríamos que um de nós algum dia teria a oportunidade de encontrar-se com vocês.


A razão deste encontro certamente é valorizar a coragem, seguramente emana dele uma sensação de poder. Contudo eu posso dizer que estou feliz, de coração. Vejo na minha frente personagens, pessoas que vocês conheceram e que não conheceram - centenas de pessoas, milhares e milhões de judeus, se não mais. Uma memória ardente que me acompanhará por tudo o que está sobre a Terra de Israel.


É triste. Não pensei que assim encontrar-nos-íamos. A única que sobrevive entre milhões. Também não imaginava que os poucos que sobreviveram não se estabeleceriam conosco aqui. Não imaginávamos que entre a quarentena e a liberdade, encontraríamos o mundo da mesma forma que o deixamos.


Para mim é difícil falar. Provavelmente há um limite superior precipitante para as experiências e choques que um ser-humano pode suportar. Não acreditava que poderia erguer-me mentalmente e continuar vivendo. Naquela realidade, quando à nossa volta havia apenas destruição e morte, sem uma ponta de esperança, sem um sinal de que não se havia apagado a humanidade sobre a Terra, e já nos haviam tomado a força para sentir e impressionar-se - a única força que nos permitiu existir, nos manteve, foram vocês: a Terra de Israel, o Ishuv (organização nacional judia na Palestina antes do Estado de Israel), o movimento dos trabalhadores, o kibutz, nossa casa.


Eu não sou capaz de descrever o que significava para nós esta casa. Não exageraria se dissesse, que até aqueles que estavam sozinhos, uma minoria, que sobreviveram, apenas para vocês sobreviveram. Durante aqueles seis anos houve momentos em que parecia não valer a pena seguir vivendo, que a única saída era cometer o suicídio. E só a sensação que lá naquela terra distante há amigos, lá está a casa que se preocupa conosco, apenas esta sensação nos permitiu viver.


Me faltam palavras na boca para expressar o meu coração. As palavras foram corrompidas, seu valor foi perdido. As mesmas palavras foram usadas antes da guerra, tanto antes como durante. E a estas mesmas palavras somos forçados a recorrer agora mesmo, depois de tudo o que aconteceu. Minha vontade de comunicar-me, de descrever, de contar para que vocês ouçam e julguem.


Meu pedido foi para contar o que aconteceu. Eu escolhi o caminho do depoimento, sem generalizações e avaliações. Eu sei bem que não está em minhas mãos transmitir a mensagem de modo que vocês possam vivê-la como nós vivemos, pois acredito que não é possível que um ser-humano possa expressar de forma clara esta catástrofe, e o porquê isso ter se passado conosco. Possivelmente a melhor maneira seja sentando e chorando, ou bradar em conjunto esta história. Eu então me empenho para contar de uma forma que todos nós possamos juntos, e cada um individualmente, possamos chegar a uma avaliação e a uma conclusão enquanto escutam o depoimento. Eu não sei se esta é a forma mais adequada para expressar como todos nos sentimos e para que eu me sinta como uma das que passou por todo aquele caminho, e o destino quis que eu continuasse viva, então não tenho outra forma.


Eu não quero concluir. Desejo apenas acrescentar algumas coisas.


Há perguntas que não dão descanso a nós nem aos nossos amigos na Terra de Israel. A primeira pergunta é: como pode ser que simplesmente tenham levado a um povo inteiro desta forma, ao extermínio? Me esforcei para explicar e com vigor consegui. Não sei qual a conclusão podemos tirar a partir destas palavras. No entanto eu quero dizer, mesmo que isso não nos ajude nem nos alivie, duvido muito que um povo se comportaria de forma distinta nestas condições de solidão e intimidação, e contra uma máquina tão eficiente e organizada como era a alemã. Nós sabemos como foram exterminados os poloneses e os prisioneiros russos, e como povos inteiros se renderam aos nazistas.


A segunda pergunta é: de onde vem esta força do movimento chalutziano (significa pioneiro, como eram chamados os líderes do movimento sionista em seus primórdios), do movimento juvenil, que tomou em suas mãos nestes dias difíceis - talvez até mesmo de forma tardia - o comando da direção da vida judaica? Me parece que não há a necessidade de buscar muito a resposta para esta pergunta. Se isso é certo, é também muito doloroso, quando você pensa que a postura da juventude na catástrofe que nos ocorreu era uma questão individual, de Itzhak ou Zivia, de Mordechai ou Frumka (se refere a Itzhak Zuckerman,, Mordechai Anielewicz e Frumka Plotnicka, todos líderes do Levante do Gueto de Varsóvia). Todos nós vivíamos e vivemos com a consciência de que não há como saber qual teria sido o nosso destino se não fôssemos membros de movimentos juvenis, se não tivéssemos sido educados desde a nossa infância a base de valores que vocês nos passaram.


Esta é, na realidade, o segredo da força do movimento: soube sempre como invocar as pessoas. Sempre objetivou educar e educou pessoas revolucionárias, que sustentaram e puderam sustentar-se, em épocas distintas e sob difíceis condições, a autonomia do povo, a soberania do povo sobre Israel, e sobre a independência do nosso povo em qualquer lugar. Somente pela força da educação que recebemos pudemos superar esse momento…


Eu contei principalmente sobre a resistência chalutziana e sobre o Levante do Gueto de Varsóvia, embora eu conheça histórias que ocorreram em outros lugares. Todavia é difícil para uma pessoa falar sobre um lugar onde não esteve. Não pude falar sobre pessoas que não tiveram como destino participar de uma guerra, que viveram na época anterior ao extermínio. Não pude falar sobre diversos lugares, que por uma série de diferentes razões objetivas não conseguiram chegar ao estágio de revolta armada. Não falei sobre Bialistok, que conseguiu organizar uma revolta, e em valor não perdeu para o Levante do Gueto de Varsóvia. Os companheiros de Bialistok se encontravam em situação de extremo isolamento, e apesar de tudo, fizeram o que fizeram.


Não podemos de forma alguma desprezar nossos companheiros de outros lugares, como Cezestochowa e Bedzin. Nestes lugares começaram revoltas, e fracassaram. Não podemos aceitar que nossa valorização seja medida pelo sucesso das revoltas. Vejam, por exemplo, Cezestochowa. Após a revolta em Varsóvia, veio até mim Rivka Glantz (uma das líderes do Levante do Gueto de Cezestochowa) e eu lhe disse: “eu tenho pensado que, depois que terminamos como terminamos, é preferível que vocês fujam para os bosques, juntem-se aos partizanos, possam matar muito mais nazistas e salvar a mais judeus”. Ela me respondeu: “nós também queremos estar até o último momento com nosso povo”.


E realmente, permaneceram. Permaneceram e pereceram. Eles não puderam concretizar o levante. Mesmo assim, seu heroísmo não é menor que o nosso. Eles viram o Levante do Gueto de Varsóvia e viram o nosso fim. Mesmo assim quiseram levantar-se, tinham sede de revolta, mas não conseguiram levar a cabo…


Me disseram que eu me recordo de nomes de companheiros, mas que não digo a qual movimento eles pertenciam. Direi a verdade: não tenho mais muita consideração à questão do pertencimento. Há nomes que eu já não me recordo a qual movimento pertenciam. Houve épocas nas quais todos nós, a princípio apenas o Hashomer Hatzair e nós, e posteriormente todos os movimentos chalutzianos, éramos de fato um único movimento, com uma só liderança, e uma só preocupação geral e conjunta com as pessoas… portanto, não me preocupei em destacar a qual movimento os companheiros pertenciam.


Acrescentarei palavras de unidade ao panorama geral. Por algumas vezes eu recordei os poloneses e sua relação conosco. É claro para todos nós que, se eles fossem realmente nossos vizinhos - os poloneses, os lituanos, os ucranianos -, caso se relacionassem distintamente conosco, um número muito maior de judeus permaneceria vivo. E não obstante é meu dever notar que nos foi dada uma ajuda moral, ainda que não suprisse as nossas necessidades, nos círculos comunistas e de círculos democratas poloneses.


Também recebemos ajudas individuais, de justos entre as nações. E já recordei o contato e a ajuda do governo polonês em Londres, apesar de tardia e muito limitada.


E sobre o contato com o Ishuv. A importância principal deste contato não foi pela sua utilidade. Mas na verdade, este contato, e mesmo após a demora em chegar, nos revigorou muito. Não há como descrever o que significava receber uma carta de vocês, o que representava uma palavra vinda de vocês. Estes eram momentos em que nos parecia que o mundo inteiro, e dentro deles os judeus, se esqueciam de nós. Muitos judeus morreram, e suas bocas amaldiçoaram também a outros judeus por isso: a judeus de países neutros, de países do outro lado do oceano: por que se calaram? Queríamos pensar que o Ishuv faz todo o possível para nos ajudar. Sinceramente?


Eu ouvi que quando vieram à Eretz Israel em 1944 Yossef Korniansky (Membro do Dror, foi sheliach - emissário - do movimento kibutziano para a Europa com o objetivo de salvar judeus do Holocausto e ajudá-los a imigrar para a Palestina) e outros companheiros, muitos ainda não queriam acreditar no que contavam. No entanto, nós, que sabíamos a verdade, buscávamos meios de nos conectarmos com vocês, queríamos contar tudo ao mundo, queríamos que o mundo não se calasse, e antes de tudo, os judeus - vocês. Fizemos tentativas e tentativas de conectar-nos com vocês, e não tivemos resposta.


Nós queríamos que as informações chegassem a vocês, não só pela história, mas também pelo futuro. Saberá o povo, saberão os remanescentes e saberão vocês, em nome do passado e como aprendizagem para o futuro. 


Em minhas palavras não falei sobre as tentativas dos judeus das distintas cidades em seguir de pé com dignidade. Este esforço foi em parte fracassado e em parte bem-sucedido. Há judeus que pegaram em armas e depois lutaram nos bosques.


Não falei sobre o caso dos partizanos judeus; não falei sobre o Gueto de Vilna, e tampouco sobre outras cidades, por ser muito difícil falar sobre lugares onde não estive. Mas houve resistência. O povo resistiu.


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Foto de capa: Israel Government Press Office (http://commons.wikimedia.org/)


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