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O "Charter Palestino"



Originalmente publicado em 24/01/2015, no Conexão Israel            

            

No fim do século XIX e princípio do século XX, Theodor Herzl, pai do sionismo político, desenvolveu uma ideia chamada Charter: convencer os principais líderes do mundo de que o Estado judeu deve existir, e torná-lo realidade através de acordos políticos. Tratava-se da Era dos Impérios, como bem definiu o historiador Eric Hobsbawm. O contexto era outro. No fim das contas, no entanto, aos poucos o Charter se mostrou eficiente, mesmo após a morte de Herzl: em 1917 os britânicos emitiram a Declaração Balfour. Em 1937, foi proposta a criação de um Estado judeu em parte das terras da Palestina. Em 1947 a ONU aprovou a Partilha da Palestina. E em 1948 o Estado de Israel foi criado. 


Em 2002, o Tribunal Penal Internacional (TPI) foi criado, com funções complementares às da Corte Internacional de Justiça (CIJ), que havia sido fundada em 1945. Ambos estão localizados na cidade de Haia, nos Países Baixos.


Eu não queria que os palestinos fossem ao Tribunal de Haia. Nem eu, nem o governo israelense, e acredito que nem a Autoridade Palestina (AP) desejasse isso realmente. É ruim para os oficiais do exército israelense, que, caso o sejam condenados, correrão risco de serem presos em vários países do mundo. É ruim para os soldados israelenses, reservistas inclusive (como eu), que também podem ser considerados criminosos. É ruim para membros do governo israelense, que podem ser condenados por crimes de guerra. É ruim para a Autoridade Palestina, que poderá sofrer sanções de Israel e dos EUA. É ruim para a população palestina, que, caso haja sanções, sofrerão uma grande crise econômica. E é ruim para o Hamas, que, se Israel for realmente condenado por crimes de guerra, não há chances que o grupo não seja.


Se isto é tão ruim para tanta gente, por que a Autoridade Palestina decidiu ir ao Tribunal Internacional de Justiça?


Quando Israel e a Organização pela Libertação da Palestina (OLP) assinaram os Acordos de Oslo (1993 e 1995), uma das cláusulas era a proibição de qualquer um dos dois lados de tomar medidas unilaterais. Esta máxima já foi descumprida por diversas vezes: os palestinos alegam que Israel a violou quando ordenou a construção do Muro de Separação, que delimitava fronteiras não acordadas, ou quando Sharon retirou o exército e os colonos israelenses da Faixa de Gaza sem negociação prévia. Israel alega que os palestinos a transgrediram, por exemplo, quando tentataram levar à ONU o reconhecimento do Estado palestino. Ou agora mesmo, quando ameaçam ir a Haia.


Benjamin Netanyahu, Primeiro Ministro israelense candidato à reeleição, anunciou o congelamento da verba palestina de exportação (algo em torno de 125 milhões de dólares), em represália. O negociador oficial da AP, Saeb Erekat, disse que, se Israel levar a cabo tal medida, cancelará os Acordos de Oslo. Toda vez que um dos dois ameaça tomar uma medida unilateral, o outro lado o intimida a desfazer os Acordos de Oslo. Então por que não desfazem?


Apesar de todas as críticas, sobretudo da extrema direita israelense, ninguém do lado israelense está realmente disposto a cancelar Oslo. Isto tem uma clara razão: Israel não está propenso a administrar o deficit palestino, a “desordem” instaurada e perpetuada nos territórios, os campos de refugiados e a população hostil. Erekat, no entanto, blefa: a AP tampouco está inclinada a romper os acordos. Cerca de 300 mil palestinos (mais de 10% da população palestina da Cisjordânia) são funcionários públicos. Se os Acordos de Oslo forem cancelados, o desemprego crescerá. Muita gente depende disso para comprar seu pão de cada dia. Oslo é um baita sucesso conservador, apesar de os conservadores dizerem o contrário. Israel foge do problema e mantém o status quo. Os palestinos administram o problema da sua forma, e não deixam a situação piorar. Então por que raios vão a Haia?


Antes de responder a esta pergunta, devemos analisar outras duas questões: Se Israel alega que age de acordo com a lei, por que não permitir que os palestinos vão a Haia? Se o Hamas foi recentemente retirado da lista de grupos terroristas pela União Europeia, por que todos têm certeza que o grupo sofrerá condenações por crimes de guerra?


Ora, convenhamos: Israel pode ter a melhor das boas vontades, mas não adianta culpar o antissemitismo do tribunal europeu por suas próprias falhas. Chamo de falhas a morte de civis inocentes, que nem sempre foram usados como escudo humano. Podemos discutir se tais falhas são intencionais, se são resultado da falta de cuidado oriundo de certa indiferença, ou se são infelizes danos colaterais causados pelos próprios terroristas, que põem suas vidas em risco de forma proposital. Essa discussão não vem ao caso. O exército israelense, por mais avançado tecnologicamente que seja, comete erros porque é comandado por humanos. Mesmo que a intenção seja boa, o resultado nunca sai como foi planejado. Em uma guerra contra terroristas, o risco ao erro é ainda maior. Israel comete sim crimes de guerra, e isto até o maior defensor do país sabe. Certamente o Tribunal de Haia encontraria alguns crimes cometidos pelas Forças de Defesa de Israel (FDI) na última guerra.


E o Hamas? Não era este o grupo recém-declarado ex-terrorista? Por que os analistas estão tão certos de que o grupo será culpado por crimes de guerra? Esta pergunta é facilmente respondida: o Tribunal de Justiça da União Europeia não é o Tribunal Penal Internacional. Os europeus tomam decisões muito mais políticas do que o tribunal internacional. Todos nós sabemos que o Hamas comete atos terroristas com frequência. Negar isto é negar o conceito mais básico de terrorismo, que é atacar a civis inocentes em prol de um objetivo político. Isto é o que o grupo mais faz. Se não tem mais sucesso, isto se deve à falta de recursos (ou de competência, não sou analista militar). Quem acompanhou a guerra, de perto ou de longe, sabe que a estratégia do Hamas infringe três leis de guerra básicas: eles atacam alvos civis, não trajam uniformes militares, não diferenciam instalações de guerra de instalações civis.


Após responder a estas duas perguntas, podemos começar a chegar à resposta da principal questão: por que a AP vai à Haia?


Apesar de correr o risco de ter suas contas congeladas. Apesar de correr o risco de receber sanções dos EUA. Apesar de correr o risco de prejudicar a própria população, parece mesmo que Mahmmoud Abbas está decidido. Indo a Haia ele: 1) Enfraquece Israel de alguma forma, o que lhe dá força; 2) Enfraquece o Hamas de alguma forma, o que lhe dá prestígio interno. 3) Vai atrás de uma solução política possível, já que as outras portas foram fechadas.


Há seis anos Abbas recebe a pressão norte-americana para ceder, mas encontra um paralelo menos afeito às concessões. Pelo contrário. A estratégia de Abbas, entretanto, segue a mesma.


Se o governo Netanyahu não para de construir na Cisjordânia, além de se recusar sequer a negociar sem impor humilhações prévias, o jeito é tentar o seu Charter. Mesmo que isto signifique perdas consideráveis para o seu povo. Mesmo que isto signifique fortalecer as direitas israelenses, que novamente se autovitimizarão em seus discursos pré-eleitorais. Mesmo que isto lhe cause uma crise com os EUA. O Charter de Abbas parece funcionar porque incomoda muito. É um Charter agressivo, pois ameaça. Incomoda de verdade. E eu acho que ele será bem sucedido. Torço para isso. Porque os fins não justificam os meios, e, convenhamos, o Tribunal de Haia é preferível à Intifada e ao terrorismo, e aos palestinos moderados já não restam muitas opções.


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Foto de capa: Mahmoud Abbas, President of the State of Palestine, addresses the general debate of the General Assembly’s seventieth session.30 September 2015United Nations, New YorkPhoto # 646783UN Photo/Cia Pak


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