Originalmente publicado em 21/11/2018, no Conexão Israel
Benjamin (Bibi) Netanyahu está longe de ser o mais amado dos líderes que teve o Estado de Israel ao longo de sua curta história. Seu recorde de bancas foi 32, muito abaixo, por exemplo, das 56 alcançadas por David Ben-Gurion em 1949, pelas 44 de Isaac Rabin em 1992, ou das 38 conseguidas por Ariel Sharon em 2003, a maior bancada desde 1992. Netanyahu, inclusive, foi o único primeiro-ministro indicado pelo Presidente do Estado a montar a coalizão (leia-se: chefiar o país) sem que seu partido tenha eleito a maior bancada, isso em duas ocasiões: 1996 e 2009. Como pode ser que o líder menos votado da história do país, que não realizou nenhum grande feito em quase 12 anos chefiando o governo, possa ser o grande favorito a seguir no comando nas próximas eleições? Como é possível que Netanyahu esteja à frente de figuras históricas como Menachem Begin, Isaac Rabin e Golda Meir em tempo de governo, e esteja a muito pouco de ultrapassar o mitológico Ben-Gurion, que permaneceu 13 anos no poder? A resposta é clara: mesmo que não tenha atingido a patente e os feitos militares de Rabin, a ovação que Golda Meir recebia dos norte-americanos, ou o simbolismo histórico de Begin e Ben-Gurion, Netanyahu prova ano a ano ser o político mais hábil da história do país. No dito popular, uma raposa. A maior de todas. E, perto de Netanyahu, todos os outros políticos são galinhas amedrontadas, ou, na melhor das hipóteses, filhotes de raposa que ainda não aprenderam a caçar. Deixemos de lado as metáforas e tentemos explicar a situação com base no que aconteceu esta semana em Israel.
A demissão de Lieberman
Avigdor Lieberman (Israel Nossa Casa) era, há até pouco tempo, considerado o grande vencedor das últimas eleições. Isso apesar de seu partido ter conseguido apenas seis cadeiras na Knesset, menor número desde 1999. Explico: mesmo tendo uma das menores bancadas da Knesset, Lieberman conseguiu o posto mais prestigiado do governo, o de ministro da Defesa. Desde 1999 Lieberman foi ministro das mais diversas pastas: Transporte, Assuntos Estratégicos e, há pouco tempo, o que parecia ser seu auge: Relações Exteriores. Ao alcançar este ministério, considerado um dos três mais importantes, só lhe faltava um último degrau antes do cargo de primeiro-ministro: o Ministério da Defesa. Lieberman prometeu mundos e fundos caso fosse nomeado para a pasta: iria acabar com o Hamas. Mataria o líder Ismail Haniye em dois dias, caso não devolvesse os corpos dos soldados mortos pelo grupo terrorista. Acabaria com os foguetes lançados da Faixa de Gaza, dando finalmente paz às cidades e povoados no sul de Israel.
Mas o que vimos foi o contrário disso: o Hamas e a Jihad Islâmica nunca tiveram um arsenal tão grande de foguetes e mísseis, e fizeram uso dos mesmos em diversas ocasiões; os corpos dos soldados jamais regressaram a Israel, e Haniye segue vivo e comandando o Hamas; o Hamas não só ainda controla a Faixa de Gaza, como ampliou suas táticas de guerra, construíndo diversos túneis subterrâneos para invadir o território israelense, além de desenvolver métodos de invasão marítimas (por meio de mergulhadores) e de até mesmo ter invadido o espaço aéreo israelense com um drone. Para completar, o Ministério da Defesa não conseguiu encontrar uma maneira eficiente de combater pipas incendiárias, que invadiam o território israelense desde Gaza e puseram em chamas os campos do sul do país. Lieberman não só não cumpriu com suas promessas demagógicas, como deixou o Ministério da Defesa em situação complicada para seu sucessor. O programa de humor político Gav HaUmá ironizou as promessas de Lieberman (e de Netanyahu também) em um episódio abaixo, legendado pelo Conexão Israel:
Por que Lieberman se demitiu?
Lieberman sempre se mostrou publicamente linha dura, embora nós não saibamos o que acontece nas reuniões de gabinete. Pois bem: antes do último conflito, o governo israelense, em decisão surpreendente, aceitou o repasse de malas de milhões de dólares do Catar para a Faixa de Gaza, a fim de dar uma solução parcial à crise humanitária (e seguramente com base em algum acordo com o Hamas, ainda não divulgado). Não escutamos queixas de Lieberman a esta decisão no momento. Na semana passada, ao ser firmado o cessar-fogo com o Hamas, Lieberman foi a público queixar-se do armistício, e anunciou a sua demissão (e a consequente saída de seu partido da coalizão, deixando-a com 61 cadeiras - o mínimo necessário para que o governo não caia). A crise estava instaurada: o ministro da Fazenda Moshe Kahlon e líder do partido Kulanu disse ser impossível governar com uma coalizão tão pequena. O ministro da Educação Naftali Bennett e líder do partido A Casa Judaica, insinuou que Lieberman era hipócrita, pois ele teria votado a favor do cessar-fogo em reunião de gabinete. Lieberman respondeu a Bennett, dizendo que este sofria de falta de memória ou era mentiroso, e quem havia votado pelo cessar-fogo foi justamente Bennett. O bate-boca ficou por isso mesmo. Mas as bases do governo tremeram.
A crise da coalizão
O segundo sinal de crise (o primeiro foi a demissão de Lieberman) veio com o ministro Kahlon, que não goza de muita popularidade comandando a pasta da Fazenda. O ex-membro do Likud esteve a ponto de deixar a coalizão e obrigar o governo a convocar novas eleições, mesmo sabendo que as probabilidades de sair enfraquecido eram grandes. Segundo o ministro da Fazenda, há pelo menos cinco deputados “rebeldes” na coalizão, que poderiam boicotar o governo e impossibilitá-lo de aprovar medidas no legislativo. Não seria possível continuar com um governo tão frágil.
Mas o que estremeceu realmente o governo foi uma ameaça do partido A Casa Judaica. Ao saber da demissão de Lieberman, Netanyahu anunciou que ele mesmo acumularia a pasta da Defesa até as eleições regulares (que deverão ocorrer em novembro de 2019). O ministro Naftali Bennett, aproveitando-se da fragilidade do governo, disse que o ideal seria que fossem convocadas eleições já, pois já não havia mais um governo de direita. Bennett sabe que disputa o eleitorado com Netanyahu, e que os eleitores mais identificados com a direita são os mesmos que geralmente exigem uma posição mais linha dura contra o Hamas. O cessar-fogo, portanto, representava fraqueza, o correto seria iniciar uma guerra que destruísse o Hamas por completo (algo que todos sabemos, teria um custo muito alto para Israel, considerando que tal ação seja possível - o que não é um consenso). Em outra entrevista, Bennett disse que o governo era “de esquerda”, declaração que pode parecer ridícula, visto que todos os partidos que compõem o governo são de direita e/ou ortodoxos, mas não é: Bennett, usando este termo, dizia que Netanyahu tomava decisões dignas de partidos de esquerda, que segundo os grupos da direita radical israelense (à qual Bennett pertence) isso é uma ofensa. Significa ser frouxo para os mais moderados, ou entreguista, traidor e inimigo de Israel para os mais extremistas. E a cereja do bolo foi a declaração que o líder da bancada do A Casa Judaica deu um dia depois: ou Bennett recebia a pasta da Defesa, ou o partido deixaria a coalizão, obrigando Netanyahu a convocar eleições.
Se as considerações de Kahlon são preocupantes, pois se referem de fato a um risco de o governo cair, a ameaça do partido A Casa Judaica era real: as palavras usadas foram as que o leitor e a leitora leram no parágrafo anterior. Parecia uma jogada de mestre. Se Netanyahu não cedesse, haveria eleições. Netanyahu provavelmente as venceria (segundo todas as pesquisas) e Bennett condicionaria sua entrada no governo ao recebimento da pasta da Defesa. Já havia preparado o terreno. Ou seja, aparentemente Bennett seria o ministro da Defesa de Israel mais cedo ou mais tarde.
O diário Haaretz divulgou uma pesquisa, na qual 74% da população israelense mostrava-se descontente com a gestão de Netanyahu frente a última tensão com o Hamas. 69% reprovavam Lieberman como ministro da Defesa, e somente 24% viam Naftali Bennett como um bom nome para assumir essa pasta. Se o leitor/a leitora pensam que Lieberman é radical demais para ter exercido este posto, saiba que Bennett é ainda mais. A Casa Judaica é o único partido da Knesset que é, por definição, contrário à criação de um Estado palestino. Bennett é o principal porta-voz deste grupo, e já ocupou o cargo de presidente do Conselho de Judéia e Samária (uma espécie de lobby dos colonos judeus na Cisjordânia). Ao contrário de Lieberman, deputado há mais de 20 anos e ministro de oito pastas, Bennett está em seu segundo mandato na Knesset, e o jamais ocupou uma das três pastas mais importantes. Sua exigência era um abuso, era enfrentar Netanyahu de frente, envergonhá-lo frente ao seu público em caso de sucesso da ameaça.
Netanyahu desde este momento declarou-se contra a convocação de eleições (diferentemente do que havia feito em ocasiões anteriores). Disse que o governo deveria seguir até o fim, que o momento era inadequado para um governo instável. Reuniu-se com Kahlon, sem grandes entendimentos. E reuniu-se com Bennett e seus correligionários (entre eles, a ministra da Justiça Ayelet Shaked). Não houve acordo.
O golpe de mestre
Vendo que não houve acordo, Netanyahu convocou a mídia para um anúncio oficial (não era uma coletiva de imprensa) no domingo às 20h. Muitos pensavam que ele anunciaria que, frente ao fracasso na negociação com os partidos que compõem a coalizão, iria dissolver o parlamento e convocar eleições. Bennett e Shaked anunciaram uma coletiva para a segunda-feira às 10h, provavelmente sem saber o conteúdo do pronunciamento de Netanyahu. Transcrevo abaixo a fala de Netanyahu com alguns pequenos cortes (o original em hebraico encontra-se aqui: https://www.youtube.com/watch?v=zPXNDONfW_U)
“Cidadãos de Israel: eu dedico toda a minha vida à segurança de Israel. Eu lutei como combatente e comandante da unidade especial de operações do Chefe das Forças Armadas. Perdi meu irmão Yoni na batalha (...). Em uma troca de tiros no Canal de Suez, durante a Guerra de Desgaste, quase perdi minha vida. Fui ferido na operação para a libertação do avião Sabena. Coloquei a minha vida em perigo em diversas ocasiões, para garantir a nossa vida aqui na Terra de Israel. Como primeiro-ministro, designei um sem número de operações, durante guerras, e no entre guerras, para garantir a segurança de Israel. A maioria delas ainda é desconhecida (secreta).
Nesta oportunidade, eu quero expressar a minha profunda estima aos combatentes do humano Tzahal (Exército de Defesa de Israel), aos membros do Shabak (Serviço de Inteligência Interna), do Mossad e da Polícia, que dia a dia põem suas vidas em risco por nós, e pela nossa segurança.
Com relação à segurança, eu tomei decisões difíceis. Parte delas extremamente difíceis. Que eu assumo total responsabilidade. Quando tomamos decisões como estas, estamos lidando com questões de vida ou morte. Em questões que de fato tocam na sobrevivência do país. Em questões como essas, não há lugar para política. Não há lugar para considerações pessoais. A maioria da população israelense sabe que quando eu tomo decisões com relação à segurança, eu as tomo de forma prática, com uma profunda e honesta preocupação, visando a paz do nosso Estado, a segurança de nossos cidadãos e de nossos soldados.
Eu não digo isso da boca pra fora. Hoje eu assumo pela primeira vez o cargo de ministro da Defesa. E eu sei que estou fazendo isso em um momento de crítica à política de segurança (defesa) de Israel. Eu quero dizer para vocês, cidadãos de Israel, eu compreendo seus corações. Grande parte das críticas emana daí. Mas por razões compreensíveis, não posso apresentar para vocês informações que tenho do Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, de generais do Tzahal, do chefe do Shabak, do chefe do Mossad e que também tenho eu. Simplesmente não posso revelá-las. Portanto vocês têm somente uma visão parcial da situação. Nós ainda estamos em meio a ações para trazer segurança para os habitantes do sul e de todo Israel. Eu não vou dizer aqui esta noite quando atuaremos, nem como atuaremos. Eu tenho um plano claro. Eu sei o que executar, e quando executá-lo. E nós o colocaremos em prática.
Cidadãos de Israel, nem sempre as coisas se mostram com clareza no mesmo momento. Quando eu assumi o posto de ministro da Fazenda, no momento de maior crise econômica, eu sabia o que era preciso fazer, e o fiz. Foi difícil. E vocês se recordam que por isso eu paguei um alto preço político. Mas hoje todos entendem que salvamos a economia de Israel, e a transformamos em uma das mais fortes do mundo. Quando eu assumi o posto de ministro das Relações Exteriores, falavam em isolamento do país. Em um tsunami político, que varreria Israel da comunidade internacional. Mas ali também eu sabia o que era preciso fazer, e o fiz. Hoje em dia as relações exteriores do Estado de Israel estão (ênfase) no auge, no melhor momento de todos os tempos. Aqui não há uma gota de exagero. No melhor momento de todos os tempos com os EUA, que transferiram sua embaixada para Jerusalém. No melhor momento de todos os tempos com todas as potências, sem exceção. Com países de todos os continentes, sem exceção. Entre eles, também estão os países do mundo árabe. Quando assinaram o perigoso acordo nuclear com o Irã, que parecia um fato consumado, ali também eu sabia o que era preciso fazer, e o fiz. Eu não relaxei por um segundo. Me posicionei contra o mundo inteiro. Me posicionei contra o presidente dos EUA, o presidente anterior. Tive até mesmo que me posicionar contra aqueles em Israel que apoiavam aquele terrível acordo, que ameaçava a nossa existência. Eu agi por todos os meios para um novo acordo, pelo cancelamento do acordo, ou pela volta das sanções contra o Irã. E isso foi o que aconteceu. Nem todos viram a situação naquele momento, mas todos a vêem hoje. E isso é o que está acontecendo agora com relação à segurança.
Nós enterraremos os nossos inimigos. Eu digo isso, meus amigos (...), a situação exigirá sacrifício. Mas não há dúvidas que com a nossa ajuda, com a ajuda de nossos soldados, com o apoio dos nossos cidadãos, nós enterraremos os nossos inimigos.
Pela minha experiência eu lhes digo: nós nos encontramos em uma das situações de segurança mais complexas. Em uma situação como esta, não derrubamos o governo. Em uma situação como esta, não convocamos eleições. Isso é irresponsabilidade. Temos um ano inteiro até as eleições. Nós estamos no meio de uma batalha, e no meio de uma batalha não a abandonamos. No meio de uma batalha, não se brinca com política. A segurança do país está além da política. A segurança do país está também além de opiniões pessoais. E por isso vocês estão vendo os esforços que eu tenho feito nos últimos tempos. Eu tenho feito esforços, todos os esforços, para evitar que se convoquem eleições antecipadas desnecessariamente.
Eu conversei com todos os membros da coalizão. Eu lhes disse: ‘este é o momento de mostrar responsabilidade. Não derrubem o governo, principalmente não em um momento delicado como este’. Eu lhes disse que não podemos repetir o erro que cometeram membros do governo em 1992, que derrubaram o governo do Likud e nos trouxeram um governo que nos deu o desastre de Oslo. Eu lhes disse que não podemos repetir o erro que cometeram membros do governo em 1999, que derrubaram o governo do Likud e subiu ao poder um governo que nos trouxe a Intifada, com mais de mil mortos. Eu espero que todos os (nossos) parceiros demonstrem responsabilidade e não derrubem o governo. Eu acredito que devemos seguir assim, pelo Estado de Israel, e pela segurança de Israel. Muito obrigado a vocês.”
Se você leu este discurso com atenção, percebeu que Netanyahu posicionou o meio de campo para armar a jogada: primeiramente, começa destacando sua atuação como militar: foi oficial em um momento conturbado, (segundo suas palavras) arriscou sua vida em diversas ocasiões e perdeu um irmão em uma batalha (Yonatan Netanyahu foi morto durante a Operação Entebbe, em 1976). Netanyahu não começa seu discurso desta maneira à toa. Ele é hoje um dos poucos políticos que foi oficial do exército, e combatente. Não um combatente qualquer: foi da unidade especial mais gabaritada do Tzahal. No passado, políticos ex-generais como Isaac Rabin, Ehud Barak, Ariel Sharon e Ygal Alon achariam graça de Netanyahu se gabar dos seus feitos como militar, mas em um presente no qual quase nenhum político importante da Knesset se destacou por uma carreira militar de alta patente, isso o diferencia. Não importa quantas vezes chefes do Shabak ou do Mossad o tenham desautorizado. Não importa se até mesmo generais do exército tenham discordado em público de disparates do primeiro-ministro. Entre os disponíveis, Netanyahu foi muito mais soldado do que Lieberman (que trabalhou no depósito do exército), ou que Yair Lapid (ninguém sabe o que de fato fez no exército). Bennet esteve na mesma unidade, chegou a uma patente mais alta que Netanyahu, mas não teve um irmão caído em Entebbe. Isso lhe dá moral para falar sobre seu papel como defensor da segurança de Israel, como soldado e como irmão enlutado. Não há ninguém na Knesset que possa batê-lo nisso.
Posteriormente, fala sobre as difíceis decisões que tomou. Cita - e esta é a parte mais importante de todo o discurso - que há informações que só ele, generais do Tzahal, os chefe do Mossad e do Shabak têm. Ou seja: Bennett e Lieberman podem discutir e opinar nas reuniões de gabinete. Podem ter posições muito definidas, mas não sabem o que estão fazendo. Só o primeiro-ministro tem todas as informações sobre a mesa, e portanto, todas as críticas alheias são inconsistentes, pois ninguém mais tem as informações que ele tem. Neste momento Netanyahu transforma Bennett e Lieberman em comentaristas de futebol que estão escutando o jogo pelo rádio. Podem criticar o técnico, pedir a entrada de algum jogador, queixar-se do esquema tático ou pedir mais ofensividade ao time, mas não sabem o que está acontecendo de fato. Se os ministros do seu governo, que participam de reuniões de gabinete onde são tomadas decisões importantes, não têm acesso a estas informações, imagine como fica a imagem dos políticos de oposição que o estavam criticando. São reduzidos a zero.
Depois de rodar a bola e construir a jogada, é só chutar para o gol. Mas Netanyahu ainda dribla o goleiro antes, só para humilhar seus adversários. Fala de quase todos os cargos que exerceu como ministro, e cita medidas impopulares tomadas em momentos de crise, cujos resultados apareceram somente posteriormente. Isso para descrever a si mesmo como um clarividente, alguém que sempre soube o que deveria ser feito e com coragem para fazê-lo. Não importa que ele não tenha citado outros cargos exercidos por ele, cujas medidas impopulares não tiveram resultado. Não importa que não haja um consenso entre os economistas israelenses com relação à política econômica de Netanyahu como ministro da Fazenda. Não importa que os êxitos nas relações exteriores de Israel citados por Netanyahu tenham a ver muito mais com a mudança de presidente dos EUA do que com a sua política externa de fato. Não importa que a Rússia, uma potência de posição estratégica no Oriente Médio, se colocou recentemente do lado do Irã, o que ameaça os interesses (e até a existência) de Israel. Fatos são fatos. A economia de Israel é uma das mais fortes do mundo. Os EUA transferiram a sua embaixada para Jerusalém. O Irã voltou a sofrer com sanções. Um bom propagandista, como Netanyahu sempre foi, transforma estes fatos em êxitos seus, ainda que sua participação seja discutível.
Depois veio o chute para o gol, já sem goleiro. Quem derruba o governo no meio de um conflito está pensando mais no próprio umbigo do que no país. Mas o passe para esse gol ele recebeu dos próprios Bennett e Lieberman. Ora, que espécie de líder coloca o país em uma situação de instabilidade dois dias depois de inimigos lançarem centenas de foguetes contra a sua população?
E depois foi só correr para comemorar. Mas Netanyahu não perde a chance de provocar a torcida adversária: tem que citar a esquerda, seus rivais quase que esquecidos quando a briga parece ser com setores do seu próprio campo político. Cita o governo do trabalhista Rabin como quem trouxe o desastre de Oslo, e o governo do também trabalhista Barak como o responsável pela Intifada que causou mais de mil mortes. Governos que só teriam assumido o poder por culpa de gente da direita, que derrubou os governos anteriores. Sabemos que a popularidade de Shamir era muito baixa antes das eleições de 1992, mas Netanyahu omite este fato. Sabemos que o seu primeiro governo caiu porque nunca teve a maior bancada, Netanyahu foi eleito graças a uma mudança na lei eleitoral que separava as eleições do legislativo das do executivo. Ele também chama o governo Barak de responsável pela Intifada. Os problemas são os seguintes: Netanyahu não diz qual é a intifada à qual se refere, justamente porque se a segunda foi responsabilidade do governo anterior, segundo esta lógica a primeira teria sido responsabilidade do governo Likud. Então, melhor esquecer que foram duas. Ele também ignora o papel de Ariel Sharon no desencadear da Segunda Intifada, provocando os palestinos já sabendo que era o favorito a vencer as eleições. E, não sem motivo, ele critica dois políticos de centro-esquerda que foram militares de grandíssimo destaque: ambos foram, antes de tornarem-se políticos, Chefes do Estado Maior das Forças Armadas, o mais alto cargo que um militar pode alcançar em Israel. Era necessário diminuí-los. Não importa que Netanyahu jamais tenha cancelado os Acordos de Oslo. Não importa que ele tenha convidado Ehud Barak para ser seu ministro da Defesa no seu segundo governo. É necessário amedrontar a população, nem que para isso a história deva ser um pouco distorcida. Golpe de mestre. Golaço de Netanyahu, mesmo que durante a arrancada tenha metido o dedo no olho de algum marcador adversário.
Como reinar sozinho?
No dia seguinte ao discurso, Bennett e Shaked, em sua coletiva de imprensa, anunciaram que não deixarão o governo. Disseram que jamais ameaçaram Netanyahu. Tentaram mostrar-se fortes, mas todos viram a derrota estampada nas suas caras. Kahlon dificilmente deixará o governo sozinho, não creio que esteja disposto a pagar um preço tão alto. Netanyahu ganhou de todos com este discurso.
Há anos Netanyahu reina sozinho em Israel. Lieberman e Bennett foram o caso de políticos que tentaram desafiá-lo estando à sua direita, e a resposta do primeiro-ministro está aí acima. No seu próprio partido, Netanyahu conseguiu anular todos os seus concorrentes, impedindo-os de crescer internamente. Dificilmente algum deputado do Likud recebe o cargo de ministro da Fazenda, Defesa ou Relações Exteriores. Exceções foram Steinitz (Fazenda em 2009), um puxa-saco de Netanyahu, que jamais o ameaçaria, e Moshe “Boogie” Yaalon, ex-Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, que foi ministro da Defesa até Netanyahu demiti-lo para dar a pasta a Lieberman. Quando Yaalon disse ter a aspiração de ser primeiro-ministro, Netanyahu rapidamente o derrubou, como havia feito já com o atual presidente Reuven Rivlin, e com Gideon Sa’ar. Este último deu um tempo à sua vida política após ter sido nomeado a um ministro do Interior, mesmo tendo sido o segundo preferido pelo eleitorado do Likud nas eleições internas. Sa’ar deixou clara sua insatisfação, renunciou ao seu mandato, mas nunca desistiu de liderar seu partido. Há algumas semanas o diário Israel Hayom, de inclinação pró-Netanyahu, publicou uma matéria que sugeria que Rivlin e Sa’ar estariam tramando um golpe contra Netanyahu. Não havia nenhuma prova disso, mas desmentir uma fake news é muito mais difícil do que difundi-la.
Os que se opõem a Netanyahu do centro são queimados em ministérios: Kahlon torna-se menos popular a cada dia, pois não consegue acabar com o problema do alto custo de vida de Israel, que se mostra principalmente no preço dos imóveis. Já foi boicotado algumas vezes pelo governo, mas sabe que pedir demissão é o mesmo que enterrar sua carreira política. Kahlon, inclusive, era membro do Likud, foi um ministro das Telecomunicações muito popular, e deixou o partido acusando Netanyahu de boicotá-lo. Criou seu próprio partido para receber o ministério que queria, mas segue sendo boicotado. Yair Lapid (Yesh Atid) também foi ministro da Fazenda de Netanyahu, mas deixou seu cargo em dois anos pensando em seu futuro político a longo prazo: sentiu-se boicotado, decidiu pela demissão mesmo sabendo que pagaria um preço alto (reduziu sua bancada quase à metade), mas hoje é o principal nome da oposição para enfrentar Netanyahu (embora saia perdendo em todos os cenários). Outros nomes foram queimados pelo primeiro-ministro ao longo dos anos exercendo cargos de ministros, Tzipi Livni (União Sionista) é um desses casos. Essa é uma excelente maneira de eliminar seus concorrentes: dar-lhes um cargo e boicotá-los durante seu mandato.
Netanyahu reina também porque sabe que a esquerda não produz líderes que convençam a população de que podem oferecer segurança aos cidadãos, como ele surpreendentemente os convence. Os dois últimos primeiros-ministros trabalhistas, não à toa, foram Rabin e Barak, dois generais míticos em Israel. Só um “político-militar” consegue transparecer a sensação de segurança à população israelense, e não pode ser qualquer um. Grande parte dos israelenses considera o conflito atual como um fracasso da esquerda, e não está disposta a dar a um civil o cargo de primeiro-ministro. Não foi à toa que foram Rabin, Barak e Sharon, três ex-generais, os que tomaram as decisões mais relevantes em relação aos palestinos nos últimos 50 anos. E hoje, em “pesquisas-sondagens”, a única possibilidade que o Partido Trabalhista tem de vencer Netanyahu é sendo liderado por Benny Gantz, último Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, muito bem avaliado antes de se retirar. Não se sabe se Gantz se identifica com o partido. Não se sabe se ele pretende se candidatar (ainda não deu nenhum sinal). É tudo especulação. Enquanto isso, Netanyahu nada de braçadas. Uma raposa política das antigas, que entende do jogo como ninguém. Não houve na história de Israel político tão hábil como Netanyahu. E com adversários tão amadores, ele seguirá governando por muito mais tempo.
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Foto de capa: https://www.flickr.com/photos/shacharabiry/101704310
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