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Minha resposta para Roger Waters


Originalmente publicado em 06/07/2015, no Conexão Israel


Acompanhei seu debate com o cantor Caetano Veloso através das cartas públicas trocadas pela internet, nas quais o senhor tenta convencê-lo a não realizar seu concerto em conjunto com Gilberto Gil em Israel. O senhor trouxe ao público brasileiro um debate já relativamente antigo no mundo anglófono, o que a meu ver é extremamente positivo. Não posso, no entanto, deixar de comentar determinados pontos levantados especialmente na sua tréplica, que são tratados de forma superficial, fazem generalizações desnecessárias e, em parte, baseiam-se em informações totalmente desconhecidas por mim, sem citar fontes.


Antes de comentar sua tréplica, acho mais do que necessário dizer que aprecio e estou de acordo com as suas boas intenções, e, assim como o senhor, tento fazer a minha parte aqui em Israel. Entendo que a nossa luta é a mesma: a criação de um Estado para o povo palestino, que dê fim às imorais ocupação e opressão israelenses às quais o povo palestino está tristemente subjugado. Também apoio, utilizando as suas próprias palavras, liberdade, justiça e igualdade para os palestinos, e admito que o governo Netanyahu, apesar de péssimo, não foi quem começou com a ocupação.


Feitas estas ressalvas, poderei começar a discordar do senhor. O boicote a Israel é, sem dúvidas, uma arma a ser usada contra a ocupação. Questiono efetividade e legitimidade. Efetividade porque aparentemente o boicote só é requerido ao que não é essencial para o país. Israel possui a patente de inúmeros produtos, entre eles remédios, tecnologia agrícola e artigos sem os quais a vida moderna seria praticamente impossível. Umas dezenas de artistas que não façam shows em Israel não afeta a economia do país a curto prazo, nem o governo Netanyahu e seu projeto político. Além disso, diversos países do terceiro mundo utilizam (e até dependem) da tecnologia israelense para atividades essenciais para a sua economia. Seria certo exigi-los o boicote? Acredito que não. Sua legitimidade (moralmente falando, no caso), também é controversa. Certamente sanções e boicotes por parte da sociedade civil são armas poderosas. Punir a sociedade inteira, entretanto, pelas ações de seus governantes seria justo?


Tomarei a liberdade de transcrever aqui parte da resposta que o senhor deu ao Caetano Veloso, ao ser questionado sobre o mesmo ponto:

Pesquisas indicam que impressionantes 95% do público judeu israelense apoiou os bombardeios a Gaza em 2014 (561 crianças mortas), 75% não apoiam um Estado palestino baseado nas longamente negociadas fronteiras de 1967, e 47% acreditam que os cidadãos palestinos de Israel devem ser destituídos de sua cidadania.


Gostaria de saber quais são as suas fontes, sr. Waters. As minhas (e não são poucas) contrastam com as suas. A parcela da população judaica israelense que apoiou a operação em Gaza no ano passado (não os bombardeios), segundo as minhas fontes, é de 91%. Mas se o senhor observar bem, o número foi aumentando aos poucos[1]. O que este aumento significa? Que a população por alguma razão mudou de ideia. Não sei se o senhor já passou pela situação de receber ataques de foguetes sobre a sua cabeça, de ter que deitar em cima de seu filho para protegê-lo quando é surpreendido por uma sirene e não ter tempo para chegar a um abrigo. O desespero faz isso. Infelizmente, caro sr. Waters, este conflito tem duas vítimas. Que os palestinos sofrem bem mais, não há dúvidas. Quem lhe escreve agora, inclusive, foi contra a Operação Margem de Proteção no ano passado. Escrevi a respeito na época. Mas não julgo negativamente a população israelense de forma geral pela sua opinião na época, assim como não julgo a opção dos palestinos quando decidiram votar no Hamas em 2006. O conflito nos força a situações tão extremas que este tipo de postura infelizmente torna-se comum.


Não encontrei a pesquisa onde o senhor afirma que 47% dos israelenses aprova a retirada da cidadania dos cidadãos palestinos (sic). E ao contrário de seus outros números, minhas fontes mostram que 60% dos israelenses apoiam a criação de um Estado palestino (sem citar fronteiras), contra 32% contrários. Apesar da deterioração da situação, o número parece razoável, não?


Por outro lado, o senhor sabe onde apenas 39% da população está a favor da criação de um Estado palestino (contra 36% contrários)? Nos Estados Unidos da América. Vi que o senhor fará shows neste país em julho e outubro deste ano. Gostaria de compartilhar aqui algumas informações sobre os EUA, que talvez lhe façam repensar estas apresentações, e (quem sabe?) realizar um boicote contra tal país. São os EUA os maiores fornecedores de armas a Israel, auxiliando na ocupação dos palestinos. No ano passado o governo Obama aprovou uma ajuda militar de mais de 200 milhões de dólares a Israel durante a operação, mas nada aos palestinos (ao menos que seja de conhecimento público). O senhor também acusa Israel de realizar um apartheid contra o povo palestino. O senhor certamente acompanhou o que aconteceu em Baltimore há poucas semanas. O que dizer sobre a perseguição em Maryland, onde 42% dos negros estão desempregados[2] e 41% dos mesmos vivem abaixo da linha da pobreza? A situação piora quando falamos sobre a população carcerária dos EUA (25% da população carcerária de todo o mundo), que tem 40% de seus componentes (melhor seria dizer “vítimas”) negros. Os negros representam apenas 13% da população norte-americana, e são quase metade dos presos. Boa parte destes presídios, inclusive, funcionam como negócios privados, dando lucro a empresários através do trabalho semi-escravo destes presidiários. Um país com nove armas a cada dez habitantes, que não dá licença maternidade e apenas recentemente começou a dar à sua própria população um direito social tão básico como a saúde. Mas não há boicote aos EUA, nem por maltratar a sua própria população, nem por ajudar a ocupação aos palestinos.


Algo parecido acontece no Brasil, também. Não há um território ocupado pelo exército, mas sim pela polícia. Não há uma minoria nacional, mas há perseguidos étnico-sociais, que a mídia tenta esconder. Não há apartheid legal, mas há racismo e violência indiscriminada contra a população de baixa renda, especialmente negros e pardos. No Brasil o número de negros presos (especialmente jovens) entre 2005 e 2015 cresceu 32%. O senhor também culpa toda a sociedade judaico-israelense por apoiar as condições de ocupação. O senhor por acaso sabia que 87% da população brasileira apoia um projeto de lei de redução da maioridade penal a adolescentes de 16 anos, que na prática vai provocar um aumento ainda maior da população carcerária no Brasil, cuja estimativa seja de 70% de reincidência? Agora pense: se o número de negros e pobres presos é desproporcional e está crescendo, a lógica é que adolescentes negros e pobres sejam presos desproporcionalmente após a aprovação desta lei. Estes jovens serão educados na escola do crime (as prisões), as quais, ao invés de regenerarem os cidadãos, na maioria das vezes os tornam reincidentes. Informação espantosa, não? Com base nisso, população brasileira não deveria ser punida por um boicote cultural internacional


Se legalmente não há apartheid no Brasil (assim como não há em Israel), os números são alarmantes: segundo a Anistia Internacional, em 2012, 77% das vítimas de homicídios no país foram negras ou pardas. Segundo a UFRJ, 71% dos negros e pardos no país são analfabetos e os negros e pardos nas universidades públicas do estado de São Paulo não chegam a 10%. Não sei se o arcebispo Desmond Tutu, citado pelo senhor como uma referência ao comparar o apartheid na África do Sul com a ocupação israelense, teve acesso a estas informações, ou se visitou algum dia uma favela no Rio de Janeiro. O que sei é que a opressão contra negros e pobres no Brasil é tão ou mais violenta do que a ocupação israelense. Inclusive, o número de homicídios per capita no Brasil é dez vezes maior que o de Israel e cinco vezes maior que em Gaza e na Cisjordânia. Imagina se falássemos sobre política? É novidade para alguém que todos os médios e grandes partidos do Brasil têm membros envolvidos em grandes escândalos de corrupção, beneficiando-se individualmente, e deixando a população carente dos mais básicos direitos sociais? Frente a estas informações, será que Caetano Veloso e Gilberto Gil não deveriam boicotar shows no seu próprio país?


Eu poderia me alongar apresentando-lhe números alarmantes sobre países como a Rússia, onde a população homossexual é criminalizada em pleno século XXI. Ou citar a violência que o regime de Putin impõe à Ucrânia (cujo governo também tem culpa) e à sua população. Por que não falar da venda de armas às piores ditaduras do mundo, que bombardeiam e massacram populações em proporções muito maiores e intenções mais nefastas do que Israel jamais teve em Gaza? A Rússia até hoje mantém províncias com identidade nacional tão consistente e historicamente justificada como os palestinos, sem aceitar sequer negociar com os mesmos, negando-lhes autonomia e usando a violência e a repressão para mantê-los. Prezado Roger Waters, o senhor sabe a quantidade de artistas internacionais que se apresentam na Rússia todos os anos? Por que a este regime não há um grupo de boicote tão organizado como o BDS?


O senhor acredita que Caetano Veloso é ingênuo ao pensar que seu show pode influenciar de forma positiva na sociedade israelense. Estou de acordo. Penso, no entanto, que o senhor não é ingênuo. Preferia que fosse, mas não é. Conhece boa parte das informações publicadas aqui nesta carta de resposta. E mesmo assim propõe o boicote só a Israel. Responsabiliza não só o governo, mas também toda a população judaica israelense por oprimir os palestinos exclusivamente, como não faz com nenhuma outra população civil em todo o mundo em casos semelhantes. Por quê?


Admiro o seu ativismo político em defesa dos oprimidos. Proponho que entremos juntos nesta luta. Mas para isso acontecer, exijo duas condições: que o senhor não trate os judeus israelenses de forma distinta do que trata as outras populações de todo o mundo, e que não me veja como um adversário somente por ser parte desta população. Caso contrário, terei que dar razão aos que o consideram antissemita.

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[1] Incluo aqui fontes de jornais israelenses. A operação por via terrestre começou com aprovação de 47% da população, e foi aumentando a até 87% após a descoberta dos túneis subterrâneos do Hamas.

[2] O desemprego dos negros nos EUA é de 11% atualmente.


Os links para os dados citados por mim se encontram abaixo:


Opinião pública israelense sobre a guerra de 2014:


Posição da população israelense quanto à criação de um Estado palestino:


Posição da população estadunidense sobre a criação de um Estado palestino:


Sobre a discriminação racial em Baltimore:


Dados sobre discriminação racial no Brasil:


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Foto de capa: 1205 Roger Waters-70

Roger Waters The Wall Live, US AIrways May 2012. Photo by Devon Christopher Adams @nooccar

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