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Marchando contra o exército



Originalmente publicado em 05/03/2014, no Conexão Israel


Entre 300 e 600 mil pessoas tomaram as ruas de Jerusalém neste domingo (2 de março), em um protesto contra a nova lei a ser votada, que reformula o alistamento militar obrigatório. Parte do princípio de Shivion BeNetel (igualdade entre os pesos), que norteou a campanha do partido Yesh Atid (do ministro das Finanças, Yair Lapid), o alistamento militar de determinados grupos que compõem a sociedade israelense, mas por alguma razão estão isentos de tal obrigação, passou a ser uma questão-chave. Lapid e seu partido, através de uma bem sucedida estratégia política, conseguiram deixar de fora da coalizão governista os dois partidos que historicamente defendem as causas ultra-ortodoxas: Judaísmo da Torá e Shas. Não obstante, conseguiu unir forças dentro da Knesset, trazendo parte da coalizão e da oposição para aprovar seu primeiro projeto: o alistamento militar obrigatório (ou o "sherut leumi", espécie de trabalho social para desenvolver o país, para os que se negarem a alistar-se ao exército por qualquer razão que seja) a todos os cidadãos israelenses. O público haredi (ultra-ortodoxo) da sociedade israelense imediatamente se manifestou de forma contrária. Sem tanta força na Knesset, no entanto, o projeto de lei foi avançando até o momento que sua aprovação aparenta ser questão de tempo. No dia 02, então, grande parte da população foi às ruas manifestar-se contra esta lei. E eu, sem querer querendo, estava lá. E contarei esta história não como um jornalista (que não sou) que estava cobrindo a marcha, mas como um habitante laico da região metropolitana de Jerusalém, que caiu de pára-quedas neste ato.


Vivo em uma cidadezinha chamada Mevasseret Tzion, a nove quilômetros de Jerusalém, onde trabalho. No sábado à noite me foi avisado que a Estrada 1 (que liga Jerusalém a Tel-Aviv, única via de acesso à Mevasseret de transporte público) seria fechada desde as 12h por tempo indeterminado, devido à manifestação "dos haredim". Apesar de defender o direito às manifestações, me indignei. Vivo em Israel há quase cinco anos e esta foi a segunda vez que vi uma manifestação desta proporção ocorrer em um grande centro urbano durante a semana. Para levar mais de 50 pessoas às ruas, os organizadores de qualquer manifestação devem necessariamente pedir permissão à polícia, que deve concordar com a data proposta,com o percurso e com a hora do evento. Em geral, as grandes manifestações são marcadas para o sábado à noite, pois já não é mais Shabat e não atrapalha ninguém que deseja locomover-se pela cidade. Sem entrar no mérito se esta lei é correta ou não, me indignou o fato de justamente as duas únicas vezes que vi manifestações durante a semana, terem sido por pautas religiosas ortodoxas. Estranho, não? Como não tinha escolha, fui trabalhar pensando em adiantar tudo o que eu pudesse, pois dificilmente sairia do trabalho antes das 20h, e meu horário de entrada aos domingos é às 8h. O caminho para o trabalho me deu uma sensação de guerra civil: centenas de policiais nas ruas; pessoas (não haredim em sua totalidade) esbravejando contra a manifestação; cavaletes amontoados para serem usados mais tarde; e ônibus e mais ônibus lotados de haredim chegando das mais diversas cidades (especialmente de Bnei Brak e Beit Shemesh, seus atuais redutos fora Jerusalém). O bairro onde eu trabalho não é próximo da rodoviária, onde se realizaria o protesto, o que diminuía a sensação de tensão. 


Às 17h20, após verificar que a Estrada 1 estava aberta para a saída de transporte público, decidi telefonar para a Egged (companhia de ônibus) para saber se as linhas que ligavam Jerusalém à Mevasseret estavam operando normalmente. Me foi informado que sim, mas com um percurso ligeiramente diferente. Decidi, então, sair do trabalho e ir para casa a esta hora.


A manifestação estava marcada para as 16h. Eu sabia que parte grande do caminho até o ponto de ônibus deveria ser feita a pé, e que eu me encontraria com os manifestantes em algum momento. Isto, confesso, me animava naquele momento. Nunca havia visto uma manifestação do público ortodoxo de perto. O que será que eles cantam? Como é o clima? As mulheres participam? Se sim, de que forma? Há crianças? Há violência? Estas e outras perguntas me motivavam a ir de encontro com eles, fotografá-los, conversar com manifestantes, etc. Por muitas vezes viverem isolados, há muito pouca chance de estabelecer um contato com este grupo social, e eu teria uma oportunidade de ouro.


A cidade estava encoberta por uma neblina impressionante. As ruas do centro estavam vazias. Saltei no shuk (mercado central), aproveitei a rara oportunidade de poder caminhar por lá sem a sensação de superlotação, e comprei carne em uma das poucas lojas abertas (um açougue, no caso). Quando cruzei o shuk, a sensação foi impressionante: centenas de milhares de pessoas vestidas de preto, um mar de haredim ocupando o horizonte da cidade. Nunca havia ido a uma manifestação com tantas pessoas, isto porque parte delas já estavam se dirigindo às suas casas. Minha maior surpresa foi o fato de as mulheres serem maioria. Como não cheguei ontem a Israel, suspeitei do que via. Os homens deveriam estar concentrados em outro lugar, em ruas paralelas ou na muvuca que se aglomerava na praça. Pedi para algumas pessoas abrirem seus cartazes, mostrarem suas bandeiras e comecei a fotografá-los. Eles prontamente atendiam ao pedido. O clima era de alegria: a maioria das pessoas sorriam, cantavam e pareciam estar alegres. Muitas crianças estavam presentes ali.


Quando me deparei com a grande aglomeração a minha frente, percebi que não chegaria ao meu destino por este caminho. Entrei por uma rua paralela e minha suspeita se confirmou: somente homens. 99,99% deles vestidos de preto, usando chapéus e longas barbas. Algumas poucas crianças. E alguns poucos não-haredim (alguns ortodoxos e quase nenhum laico, incluindo os jornalistas que cobriam a passeata). Decidi aproveitar melhor minha experiência e aprofundá-la: por que não passar-me por repórter e conversar com eles? Foi o que comecei a (tentar) fazer. A grande maioria deles não quis me responder, nem informalmente. Um judeu secular como eu é suspeito demais. Alguns desconversavam. Outros me olhavam feio, amedrontando-me. Um homem me disse que havia gente mais apropriada para me responder do que ele.


Resolvi mudar de estratégia: aproveitei-me do meu sotaque e perguntar, como um ole chadash (novo imigrante) que recém-chegou em Israel, o que estava acontecendo. Deu certo! Minha primeira conversa (curta), foi com um soldado haredi. Ele me disse que estava protestando devido às más condições dos religiosos no exército: afirmava não haver comida kasher, não respeitarem suas diferenças e etc. Eu, que servi o exército, sou totalmente cético quanto a isso, mas não o questionei. Julguei por bem não fazê-lo naquele momento. Ao ser perguntados sobre "Qual o objetivo da manifestação" todos me davam a mesma resposta: "não é uma manifestação, é uma reza". Alguns explicavam que a reza era para agradecer que a absurda lei de alistar estudantes da Tora não passaria pela Knesset. Outros me devolviam a pergunta: "Você é judeu? Já rezou alguma vez? Não te ajudou?" Quando eu começava a colocar política no meio ("Você acha que os parlamentares se sensibilizarão e não aprovaram a lei?"), suas respostas e seus olhares passavam a ser hostis, e eu rapidamente mudava de assunto. Apesar de (até então) não ter visto nenhum ato de violência (e um dos jovens ter frizado isto: "Não te orgulha uma manifestação como esta, só com judeus, e com todos alegres, dançando e sem violência?"), confesso que tinha medo. Tinha medo de que eles se sentissem provocados. Lá eu era uma minoria absoluta, questionando os manifestantes (por mais que de forma educada). Não sei como eles reagem a alguém que força uma abertura a questionamentos. Por isso, parei.


Filmei. Fotografei pessoas, inúmeros cartazes e panfletos. Assisti a um judeu secular roubar e correr com um cartaz do qual não gostou, e ser perseguido e rodeado por haredim. Se apanhou eu não sei, saí de perto. Mas fotografei o cartaz. Vi cartazes bem humorados. Vi inúmeros grupos de chassídicos dançando. Vi tantos haredim, tantos cartazes com mensagens similares, que cansei. Decidi ir para casa. Ao chegar no ponto de ônibus, no entanto, a rua estava bloqueada. Telefonei para a Egged novamente, e fui informado que há uma hora não saem ônibus para Mevasseret. Me irritei. Após caminhar por 40 minutos, tinha que caminhar outros 40, até a saída da cidade, parada obrigatória das duas linhas pelas quais eu deveria viajar. Ao esperar no sinal, a mishteret hagvul (Guarda da Fronteira) estava se desdobrando para evitar atropelamentos e acidentes neste ponto de ônibus, fundamental para quem quer sair da cidade. Muitos manifestantes, já dirigindo-se às suas casas, desrespeitavam as autoridades sem pudor, com crianças, inclusive. E um senhor de aproximadamente 70 anos ofendia incessantemente a um policial, chamando-o de árabe sujo, e recomendando que ele fosse para Gaza pois aqui não precisaríamos dele. O policial o repreendeu, mas ele não parou. Eu mordi a língua e não disse nada. E depois me peguei pensando: "trata mal os árabes, os manda para Gaza e não quer servir ao exército... o que seria de nós se todos fossem como ele?".


Peguei meu ônibus, após grande tumulto, e fui para casa. Saí com a percepção de que os haredim são o grupo mais coeso da sociedade israelense. Saí também pensando que deveríamos dialogar mais, pois minha última impressão não foi a melhor, e quando não nos conhecemos, tendemos a generalizar nossos preconceitos. Espero que um dia eles nos dêem espaço, em uma conversação aberta, sem pré-exigências.


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Foto de capa: Nir Hason ניר חסון


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