Originalmente publicado em 08/01/2019, no Conexão Israel
Já foi época em que dois grandes partidos monopolizavam as eleições israelenses, e alguns outros pequenos e médios partidos periféricos representavam algumas minorias (étnicas, religiosas ou ideológicas). Era fácil explicar o espectro político israelense, quando se sabia que o primeiro-ministro seria do Partido Trabalhista ou do direitista Likud. Também sabia-se que o Partido Trabalhista, automaticamente, formaria coalizões com partidos pequenos social-democratas ou socialistas (Ratz e Mapam, por exemplo), enquanto os partidos nacionalistas tinham mais identidade com o Likud (o Partido Nacionalista Religioso - Mafdal -, especialmente depois do fim dos anos 1970). Sabia-se também que os partidos ultra-ortodoxos poderiam estar com qualquer um dos blocos, e que os partidos árabes (e o Partido Comunista) não estariam com nenhum deles. Tudo isso era óbvio. Basicamente, ganhava as eleições o grande partido que levasse vantagem. Até 1996, não houve partido que comandasse a coalizão governista sem ter ao menos 40 cadeiras das 120 possíveis na Knesset (parlamento israelense). Esses tempos acabaram, e isso é problemático. Não porque estes dois partidos deveriam, para sempre, dividir a governabilidade do país. O problema é que o modelo atual torna a política menos ideológica e o governo menos “governável”. Os partidos de “centro” são os principais agentes dessa mudança, mas não são os únicos.
A cultura política israelense extinguiu seu primeiro e forte partido de centro, o Sionistas Gerais durante os anos 1950-60. Parte do partido se juntou com o Herut, formando o Likud. Outra parte se juntou ao Partido Progressista e formou o Partido Liberal (que jamais alcançou mais que cinco cadeiras, e no fim dos anos 1980 se uniu ao Partido Trabalhista). O centro político era insignificante, sobretudo após a Guerra dos Seis Dias (1967), quando o Partido Trabalhista abandonou seu radicalismo e tornou-se um partido de centro-esquerda, em todos os aspectos. Faça você, leitor, uma busca no Wikipedia e veja os resultados das eleições desde a primeira Knesset, e verá que são raríssimas as exceções a esta regra.
Tudo mudou nos anos 2000. Mais precisamente nas eleições de 2003, quando o jornalista Yossef (Tommy) Lapid decidiu criar um partido de centro, cuja principal bandeira era combater a coerção religiosa sobre a população secular israelense, que cada vez se manifestava mais fortemente através das alianças feitas entre os partidos ortodoxos e os grandes blocos. O Shinui (Mudança) não tinha uma posição firme sobre o conflito com os palestinos, nem era um partido que se definia como mais ou menos liberal ou social-democrata. Era um partido de uma bandeira só. E conseguiu acarretar 15 cadeiras nas eleições, somente quatro a menos que o Partido Trabalhista, que teve seu pior desempenho até então na história política de Israel. O fenômeno Shinui desapareceu nas eleições de 2006. Não porque o partido não tenha conseguido evoluir com sua principal bandeira (de fato, não conseguiu), mas sim porque a porta que Tommy Lapid havia aberto não seria mais fechada até hoje. Em 2006, o partido que venceu as eleições, foi formado por ex-membros dos partidos Likud, Trabalhista e Shinui. Este partido era o Kadima (Adiante). Um partido comandado pelo (ex?) linha-dura Ariel Sharon, mas cujo número dois da lista era o Nobel da Paz Shimon Peres. O Kadima se definia de centro, e surgiu igualmente com uma bandeira só: o pragmatismo para a resolução do conflito com os palestinos. Sharon provou a teoria de que o líder era maior do que o partido, e criou a maior força política do país. Mesmo sem Sharon, hospitalizado até sua morte em 2014, o Kadima desbancou os dois partidos que, durante toda a história, haviam governado o país: com 29 cadeiras formou a maior bancada da Knesset, e armou a coalizão, liderados por Ehud Olmert, outro ex-Likud, ex-prefeito de Jerusalém.
O fenômeno Kadima durou mais tempo que o Shinui: nas eleições de 2009 obteve 28 bancas e formou novamente a maior bancada da Knesset, mas com só uma cadeira de vantagem sobre o Likud de Benjamin Netanyahu, a quem foi dado o direito de armar a coalizão. Daí em diante, o Kadima perdeu o fôlego. Mas a sua ideia, não. Nas eleições seguintes (2013), havia dois novos partidos de centro concorrendo além do Kadima: HaTnua (O Movimento), formado por Tzipi Livni em conjunto com alguns rebeldes do Kadima e do Partido Trabalhista, e o Yesh Atid (Há Futuro), criado por Yair Lapid, filho de Tommy, também jornalista, com uma bandeira um pouco mais abrangente que a do pai: seu discurso se direcionava à classe média, que havia realizado grandes protestos por justiça social em 2011 (leia mais sobre isso aqui), e repetia Tommy Lapid ao defender a população secular contra os privilégios de setores ortodoxos. O Yesh Atid foi o segundo partido mais votado (19 assentos), dando a Lapid todos os ministérios que ele desejava: Fazenda, Educação, Saúde e outros.
Por fim, em 2015, nas últimas eleições, outro novo partido de centro apareceu: o Kulanu (Todos Nós), liderado pelo ex-Likud Moshe Kahlon, que conseguiu 10 cadeiras (contra 11 de Lapid). Kahlon havia sido um ministro das Telecomunicações muito popular, mas alegava que Netanyahu não o deixava crescer no Likud, e por isso deixou o partido para criar o seu próprio. Este processo deu-lhe cacife para administrar a pasta da Fazenda. Funcionou. Kahlon nos últimos quatro anos controlou a economia do país.
Para as eleições de 2019, marcadas para o dia 9 de abril, a farra dos partidos de centro é maior ainda: fora o Kulanu e o Yesh Atid, teremos os novos:
Resiliência a Israel, encabeçado pelo último e popular chefe do Estado Maior das Forças Armadas. Benny Gantz. O partido é a sensação das eleições, já que Gantz é o nome que aparentemente tem mais chances de bater Netanyahu. Pesquisas apontam que, caso Gantz tivesse se somado ao Yesh Atid ou ao União Sionista (junção do Partido Trabalhista com o HaTnua de Tzipi Livni), estariam em empate técnico com o Likud. Fazendo questão de distanciar-se da esquerda, Gantz optou por registrar seu próprio partido sem anunciar nenhum outro membro, e parece funcionar: ele vale sozinho por entre 12 e 16 cadeiras segundo as últimas pesquisas, formando a segunda maior bancada da Knesset.
Guesher (Ponte), formado pela deputada ex-Israel Beiteynu Orly Levy-Abecassis, que, apesar de ter pertencido de um partido de ultra-direita nacionalista, é considerada moderada e não classifica seu partido como “de direita”. Ela ainda não anunciou outros membros da lista, é mais um partido do eu-sozinho. A margem do Guesher hoje varia entre não ultrapassar a cláusula de barreira chegando a até 5 cadeiras.
Telem, partido do ex-Chefe do Estado Maior das Forças Armadas e ex-ministro da Defesa Moshe “Boogie” Yaalon. Ex-Likud, Yaalon é conhecido por identificar-se com a direita em relação ao conflito, mas mesmo enquanto ministro mostrava-se crítico ao extremismo e ao desrespeito à democracia ao qual culpava setores do governo. Ele garantiu que não participará de um governo encabeçado por Netanyahu, e não descartou a hipótese de concorrer em conjunto com Gantz. Ele também não anunciou ninguém na sua lista, embora se especule a participação de outro ex-Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, Gaby Eshkenazi. Yaalon atingiria de 4 a 6 assentos na Knesset.
Tnuat HaMechaa LeHanagat HaMedina (Movimento de Protesto pela Liderança do País), registrado pelo advogado e ativista social Eldad Yaniv. Criador do movimento HaSmol HaLeumi (Esquerda Nacional), Yaniv não costuma ser classificado por gente de esquerda como semelhante. Atualmente, nem ele mesmo costuma dizer-se de esquerda. Yaniv destacou-se por combater a extrema direita, especialmente o movimento macarthista Im Tirtzu (leia mais aqui), e já conta com gente na sua lista: o ex-coordenador do Serviço Secreto Gonen Ben-Ytzhak, a ativista social ultra-ortodoxa Zina Daayan, o ativista social Ido Rosenblitt e o coronel da reserva Gadi Meiri. Seu partido não aparece nas pesquisas.
Achi Israel (Meu Irmão Israel), formado basicamente por ex-oficiais do exército e intelectuais. Seu líder é Guidon Shefer, general da reserva e ex-piloto de combate da aeronáutica. Outros nomes são Adina Bar-Shalom, ativista social e fundadora do Instituto Acadêmico Ultra-Ortodoxo, Ruth Malachi-Yaron, coronel da reserva, primeira mulher a servir como porta-voz das forças armadas, entre outros. Suas propostas não trazem grandes novidades e evitam tocar em pontos polêmicos, como a relação entre religião e Estado ou a criação de um Estado palestino. Também não aparece nas pesquisas.
HaYamin HaChadash (A Nova Direita), criado pelos ministros da Educação e Justiça, Naftali Bennett e Ayelet Shaked, ambos recém desfiliados do religioso-sionista A Casa Judaica. Este não é, de forma alguma um partido de centro. Seu nome e as declarações de Bennett e Shaked não escondem sua inclinação à (extrema) direita. A versão oficial do seu rompimento com o partido A Casa Judaica (tradicional partido sionista-ortodoxo) é a de que eles não conseguiram transformar o antigo partido em um lar para os eleitores seculares. Isso os põem mais ao centro, pelo menos neste aspecto. Declarações ultraconservadoras de Shaked em relação a homossexuais e direitos de minorias, no entanto, nos leva a questionar tal versão. Seu lançamento por meio de uma coletiva de imprensa anunciada com quatro horas de antecedência, pegou de surpresa os próprios membros do A Casa Judaica. Bennett e Shaked são referências relevantes da direita nacionalista israelense, ele ortodoxo e ela secular. Varia entre 6 e 9 cadeiras na Knesset.
Os dois primeiros destes quatro partidos dividirão votos com os partidos de centro já existentes, Yesh Atid, Kulanu, e muito provavelmente com o Partido Trabalhista e o HaTnua (O Movimento), recém separados e extinguindo a União Sionista. Certamente este avanço do “centro” freará um possível crescimento do social-democrata Meretz. O partido de Yaalon, se vier a existir realmente (o que é bastante provável), poderá ameaçar o Likud, enquanto o partido de Yaniv pode enfraquecer a centro-esquerda. A Nova Direita poderá, de uma vez só, enfraquecer o Likud e desaparecer com o A Casa Judaica e o Israel Beiteynu, roubando-lhes votos que os fariam ultrapassar a cláusula de barreira. Cada vez mais a farra dos novos partidos, inventados do dia para a noite, enfraquecem os grupos políticos tradicionais de Israel.
O avanço de partidos com um discurso de “centro” parece ser uma nova tendência mundial, obviamente Israel não ficaria de fora dessa. Além disso, ser de “esquerda” há 20 anos praticamente impossibilita um partido de chegar ao poder no país. A esquerda é atacada e culpada pelos males do país, mesmo sem tê-lo governado nos últimos 19 anos. Este vácuo favorece o surgimento de um “centro” político. Some isso à política de Israel, complexa e multifacetada, e você verá que é natural que mais de um partido apareça desejando conquistar a hegemonia do campo. O problema é que o surgimento desses partidos enfraquece a coalizão e a oposição ao mesmo tempo, atingindo em cheio a democracia.
Nas últimas eleições, Likud e União Sionista pareciam estar no caminho de reverter a influência desproporcional dos partidos de centro, tendo ambos os partidos aumentado suas bancadas consideravelmente. Ainda assim, não chegaram, juntos, à metade das cadeiras da Knesset (54 de 120). Netanyahu foi obrigado a fazer cada vez mais concessões a partidos de 6 e 8 cadeiras a fim de formar a coalizão, pois seu partido sozinho não possui, hoje, nem metade dos assentos necessários para governar. Na oposição acontece o mesmo problema: mesmo quando a coalizão está dividida em função de uma votação, muitas vezes a oposição não consegue barrar a aprovação de uma lei ou uma medida, porque partidos da oposição podem estar de acordo com iniciativa do governo. A fragmentação é gigante, e isso dificulta a governabilidade. Netanyahu, por exemplo, não consegue pôr em prática políticas que seu eleitorado exige de seu partido por não conseguir consenso em sua coalizão.
Está claro que é urgente uma reforma política em Israel: criar um partido do zero é muito fácil para qualquer um, e o limite de tempo para que uma pessoa se filie a um partido vai até menos de dois meses antes das eleições. Em 2013, o ex-ministro da Defesa Amir Peretz, após ser derrotado nas primárias do Partido Trabalhista, anunciou a 45 dias das eleições sua filiação ao HaTnua de Tzipi Livni, como número 3 da lista. O mesmo HaTnua havia sido formado por Livni três meses antes das eleições, logo após a sua derrota para o então ministro da Defesa Shaul Mofaz nas primárias do Kadima. Livni era a número 2 da lista do Kadima, e Peretz era o número 5 da lista trabalhista. Para as eleições de 9 de abril de 2019, mais partidos podem surgir do dia para a noite, e mais deputados podem filiar-se e receber posições de destaque em partidos às vésperas das eleições. Isso dificulta a fidelidade partidária, a identificação ideológica, e cria uma farra de novos partidos. Além disso, hoje somente quatro partidos realizam eleições democráticas para definir suas listas: Likud, A Casa Judaica, União Sionista e Meretz. Outros partidos têm suas listas decididas por uma comissão ou simplesmente pelo seu eterno líder. É urgente uma reforma política que (1) restrinja as filiações a partidos a menos de, pelo menos, seis meses das eleições, (2) dificulte a criação de novos partidos e (3) exija eleições democráticas para as listas internas.
Mas não só isso é o que fragmenta o quadro político israelense e dificulta a governabilidade. O israelense, com o passar do tempo, passou a votar mais no candidato e menos no partido. Passou a se importar menos com a lista e mais com quem a encabeça. Por isso a simples presença de Benny Gantz no União Sionista fazia com que o partido aumentasse seu percentual de votos em 150% ou mais, segundo as pesquisas. Por isso líderes carismáticos e deputados relegados a segundo plano criam seus partidos. Moshe Kahlon e Boogie Yaalon não conseguiram vencer Netanyahu dentro do Likud, e agora criam seus próprios partidos para tentar derrotá-lo. Bennett não conseguiu garantir que seu partido lhe dê mais poderes como seu líder, e por isso teria criado seu próprio partido, com suas próprias regras. Eles sabem que a população não se importa tanto com a lista nem com a democracia interna dos partidos, as próprias pesquisas mostram que ainda que o eleitor não conheça nem as listas de candidatos, nem as propostas de determinados partidos, a figura de seu líder já é suficiente para garantir-lhes votos. Isso é triste.
Mas nem sempre foi assim. No início dos anos 1960, o primeiro-ministro David Ben-Gurion, brigou com quase toda a liderança do Partido Trabalhista. Decidiu se desfiliar e criar um novo partido, o Rafi (sigla de Lista de Trabalhadores de Israel), para concorrer às eleições de 1961. Sua lista contava com gente como Shimon Peres e Moshe Dayan, e Ben-Gurion já era um mito. No entanto, seu partido obteve somente 10 assentos na Knesset, contra 45 do Partido Trabalhista, e Ben-Gurion deixou a política frustrado. Era a resposta das urnas, de que ninguém era maior do que o partido, e o povo votava na ideia, não na pessoa. Nas eleições seguintes, o Rafi já havia se somado novamente ao Partido Trabalhista, e, em conjunto com o Mapam (Partido Sionista Socialista) obtiveram 56 assentos na Knesset. Em 2006, quando Ariel Sharon deixou o Likud para formar o Kadima, seu ex-partido obteve apenas 12 cadeiras na Knesset, seu pior resultado na história. Os tempos haviam mudado.
Se hoje Netanyahu criasse seu próprio partido, haveria grandes chances de que ele vencesse as eleições, pois para 51%* dos eleitores israelenses ele é a pessoa mais adequada para exercer o cargo de primeiro-ministro no país hoje (esse número já chegou a 67%).
O que sabemos hoje é que, apesar da fragmentação sem fim, se a Justiça lhe permitir concorrer às eleições, Netanyahu só não será o próximo primeiro-ministro caso aconteça algo fora de série. O primeiro-ministro foi indiciado por três casos de corrupção (pastas 1000, 2000 e 4000, leia mais aqui), e pode ser forçado a renunciar a qualquer momento caso o procurador geral Avichai Mandelblit entenda que seu lugar é no banco dos réus.
Mas, caso isto não ocorra, a sua reeleição é tida como certa por qualquer instituto de pesquisas. Evidentemente, frente a este novo cenário, algo pode mudar, mas não é provável que isso aconteça. O que sabemos é que, mesmo ganhando, Netanyahu provavelmente vai sair perdendo. Será cada vez mais dependente de mais partidos, mais fragmentados, e seu partido provavelmente terá força reduzida. Cada eleição que passa, Netanyahu se firma mais como único líder de Israel, mas tem mais dificuldades para governar. E assim seria com qualquer outro que estivesse em seu lugar. O centro gigante empurra a direita e a esquerda contra a parede, sufocando o que resta de ideologia no espectro político israelense.
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*Atualização: no dia 8 de janeiro, o diário Haaretz divulgou uma pesquisa feita pelo projeto STATENET: a pergunta era: "quem você acha a pessoa mais indicada para ser o primeiro-ministro de Israel?" Dois cenários foram induzidos, sempre com apenas duas opções. No primeiro, Netanyahu tinha 41% contra 38% de Benny Gantz. No segundo, o atual primeiro-ministro tinha 45% contra 29% de Yair Lapid. Netanyahu segue liderando as pesquisas na preferência nacional, mas nunca esteve tão ameaçado. Sua margem de liderança sempre foi muito mais alta do que a do segundo colocado. Ainda faltam quatro meses para as eleições, muita coisa ainda pode acontecer. Mas é certo dizer que o primeiro-ministro nunca foi tão vulnerável desde 2009.
**Atualização 2: Os partidos Telem, Resiliência a Israel e Yesh Atid se juntaram na lista conjunta chamada Azul e Branco, e lideram as pesquisas para governar o país após 9 de abril.
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Foto de capa: Own Work. Hanay.
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