Originalmente publicado em 08/02/2023, no Conexão Israel
O novo governo israelense está prestes a realizar uma reforma no sistema judiciário do país. Não há dúvidas que Israel, um país para lá de complexo, sem até hoje promulgar uma constituição, necessita mudanças no seu sistema judiciário, burocrático e por muitas vezes contraditório. Esta reforma, no entanto, pode colocar o país no grupo das democracias iliberais, ou dos novos regimes chamados “populistas autoritários”, cada vez mais comuns na Europa Oriental, a exemplo de Polônia e Hungria. Que reforma seria essa? Tentaremos explicá-la neste artigo.
Uma breve introdução: Israel é uma democracia parlamentarista, cujo governo precisa ter uma maioria no parlamento (Knesset), que se constrói num sistema de coalizões. Desta maneira, os poderes executivo e legislativo funcionam de forma simbiótica, um dependendo do outro, com influência mútua e com pouca margem de negociações com a oposição. O poder judiciário, por sua vez, é totalmente independente do executivo e legislativo. Salvo no mecanismo de nomeações de juízes, os poderes executivo e legislativo não têm absolutamente nenhuma ingerência no terceiro poder. E mesmo na nomeação de juízes, a participação de políticos eleitos na comissão responsável por escolher os magistrados é minoritária.
A ausência de constituição em Israel é substituída por um conjunto de leis básicas: são leis que foram aprovadas com um caráter especial, quase que constitucionais, cujo peso é maior do que o das outras leis. No início da década de 1990, o presidente da Suprema Corte israelense, Aharon Barak, realizou a chamada “revolução jurídica” no país, outorgando à Suprema Corte o poder de decidir vetar leis votadas pela Knesset caso estas contrariassem os princípios de qualquer uma das leis básicas. E, desde então, quase 20 leis e decisões do legislativo foram vetadas, quase sempre aprovadas por coalizões da direita.
De uns anos para cá, diversos políticos passaram a questionar um suposto desequilíbrio entre os poderes, julgando que o Judiciário, sobretudo através da Suprema Corte e do Conselheiro Jurídico do Governo, possuíam demasiada autoridade. Medidas foram adotadas por ex-ministros da Justiça, como Ayelet Shaked (A Casa Judaica) e Amir Ohana (Likud), mas uma reforma radical sempre foi freada pelo primeiro-ministro Binyamin Netanyahu. Até que chegamos a 2023, quando seu fiel escudeiro e ministro da Justiça, Yariv Levin, apresenta um projeto de reforma espantosa, a ser realizada em quatro etapas, sendo a primeira já tornada pública e as outras ainda em negociações internas na coalizão. Quais seriam elas?
Passo 1: Os princípios da reforma.
O primeiro pacote de leis já foi proposto abertamente. Trata-se de uma sequência de leis cujo objetivo é enfraquecer as instituições mais poderosas do Judiciário.
a) Aprovação do “Parágrafo da Superação”. Tal medida inseriria nas leis básicas um parágrafo que que daria a uma maioria simples da Knesset o poder de “desvetar” uma decisão da Suprema Corte com base nas Leis Básicas. Em outras palavras, daria à Knesset o poder de passar por cima de decisões judiciais sobre questões constitucionais. Em democracias liberais mundo afora, é a Suprema Corte quem tem a função de interpretar a constituição. Em Israel, já não seria.
b) Fim do “Princípio da Razoabilidade”. Tal princípio dá poder ao judiciário de tomar decisões usando o bom senso como fator. Um exemplo atual: 10 dos 11 juízes da Suprema Corte decidiram que a nomeação de Arie Dery para ministro não era legal e obrigaram Netanyahu a demiti-lo, baseando-se no Princípio da Razoabilidade. Dery tinha feito um acordo com a Justiça e se comprometido a deixar a vida política, renunciando a seu cargo e aceitando a condenação condicional. Após as eleições (para as quais foi eleito), Dery negociou a aprovação de uma lei que permitisse que pessoas que estivessem em liberdade condicional pudessem ser ministros. A Suprema Corte entendeu que esta lei ultrapassava os limites do bom senso (até porque Dery é reincidente, e já ficou na cadeia por 14 anos).
c) Aumento dos participantes da coalizão na comissão que elege juízes. Hoje a comissão que cuida da nomeação de juízes conta com 8 membros: o ministro da Justiça; 2 parlamentares (geralmente um da coalizão e um da oposição); dois advogados eleitos pela Ordem dos Advogados; 3 juízes da Suprema Corte, sendo um deles o(a) presidente. A reforma pretende incluir mais três membros do parlamento, transformando-os em maioria.
d) Diminuição dos poderes da Conselheira Jurídica do Governo (espécie de PGR de Israel). A Conselheira Jurídica do Governo tem poderes para dizer ao governo o que ele pode fazer e o que não (o governo pode ignorá-la, e a decisão vai à Suprema Corte); de investigar o governo em conjunto com a Polícia; de aceitar acusações formais contra membros do governo, transformando-os em réus na Justiça; dentre outras coisas. A reforma pretende transformá-la, como seu nome diz, somente em conselheira. O governo recorre a ela em caso de dúvida jurídica, e ela diz o que lhe parece ou o que não. Mas não teria mais o primeiro dos poderes, por exemplo, de dizer se a medida do governo é ou não legal.
Passo 2: Lei Básica - A Legislação.
A reforma prevê a aprovação de uma lei básica para regular as leis e separá-las por importância. A ideia não é negativa, e tem até alguns pontos interessantes. Ela, por exemplo, torna mais complexa a aprovação de uma lei básica, obrigando-a a passar por uma quarta leitura (hoje a Knesset exige três leituras) na Knesset seguinte à que a aprovou nas três primeiras. Mas este projeto de lei também possui seu lado obscuro.
Toda lei básica aprovada com menos de 61 deputados perderia seu status de lei básica, convertendo-se automaticamente em uma lei normal. A lei básica “Respeito ao Homem e a sua Liberdade”, por exemplo, a lei que protege os direitos humanos em Israel, não passou com 61 votos. Ainda que ela tenha sido aprovada com uma vantagem de 32 votos, perderia seu status de constitucional. E é justamente esta lei que mais incomoda o governo hoje em dia, pois é com base nela que a Suprema Corte veta a grande maioria das ações consideradas ilegais na Cisjordânia.
Além disso, para vetar uma lei, a Suprema Corte hoje necessita de maioria simples do plenário. Ela pode vir a necessitar de uma unanimidade (ainda não há consenso sobre a quantidade) , ou de um mínimo de 80% dos juízes da Suprema Corte (nove de 11).
Passo 3: Dificultar o Acesso da Sociedade Civil à Suprema Corte.
Nas duas últimas décadas, a Suprema Corte passou a permitir que, em questões relativas ao poder público, que qualquer civil (ou organização civil) recorresse à corte. Caso esta medida seja aprovada, apenas o principal afetado poderia recorrer ao tribunal.
Por que isso é crucial? Porque diversas organizações de direitos humanos recorrem à Suprema Corte para evitar abusos, em especial de movimentos de colonos na Cisjordânia. Geralmente, auxiliam pessoas que não têm recursos para pleitear algo no principal tribunal do país, e isso dificultaria o trabalho dessas ONGs de maneira crucial.
Passo 4: A divisão do Cargo de Conselheira Jurídica do Governo.
O governo planeja dividir em dois este cargo, que já teria sido esvaziado no primeiro passo: (1) Processador do Estado e (2) Assessor do Governo. Mas esta etapa é mais complicada, porque pode configurar conflito de interesses para Netanyahu. Vale lembrar que ele é réu em três processos na Justiça, e que isso poderia ajudá-lo retroativamente.
Em suma: esvaziamento do judiciário, reduzindo poderes da Suprema Corte e da Conselheira Jurídica do Governo; aumento da influência da coalizão na nomeação de juízes; cancelamento e enfraquecimento de “leis indesejadas”; submissão da Justiça à Knesset; afastamento da sociedade civil da Justiça. São medidas de um governo que não deseja ser atrapalhado por um judiciário independente. Para isso, membros da coalizão incitam contra os representantes do Judiciário sem fim. Esta semana, o ministro da Segurança Pública Itamar Ben-Gvir (Sionismo Religioso) convocou a imprensa para culpar a Conselheira Jurídica do Governo de impedi-lo de atuar com força contra terroristas, por exemplo. A deslegitimação de juízes (sobretudo os da Suprema Corte), de procuradores e até da Polícia são práticas comuns de deputados do Likud e dos partidos mais à direita e que compõem o governo. Foi criado um clima de guerra na sociedade civil.
O Likud, justamente, é um partido de tradição liberal. Seu maior expoente histórico, Menachem Begin, tratava o Judiciário como algo sagrado para a democracia israelense. Jamais cogitou desobedecê-lo, e enquadrava membros de seu partido que fizessem críticas além da conta ao poder. O próprio Netanyahu tem um histórico de discursos defendendo um Judiciário forte, independente, que seriam uma das principais virtudes do que ele chama “a única democracia do Oriente Médio”. Mas agora parece ter se esquecido de seu passado recente, e trabalha por esta reforma com unhas e dentes. O que aconteceu com o Likud?
O discurso populista de ataques às supostas elites e ao deep state encontrou eco em parte significativa da direita israelense. Governando o país há 15 anos (ou há 24 anos, depende para quem você pergunte), não há explicações para o fortalecimento de grupos radicais palestinos, como o Hamas e a Jihad Islâmica. O governo não tem como explicar para o setor radical de sua base como não voltou a ocupar e colonizar a Faixa de Gaza, e como não anexou a Cisjordânia em todos estes anos, uma vez que teve todo o poder em suas mãos. Sendo assim, eles culpam os “pkidim”, funcionários concursados, que seriam quem realmente manda, o tal do deep state. Seriam eles os responsáveis pelos problemas do país, que freiam a direita a realizar seu governo tal qual gostariam. As organizações seriam tomadas por judeus ashkenazitas esquerdistas liberais, membros das elites econômicas e intelectuais do país, que seriam racistas com relação aos judeus de origem oriental, e isso deve acabar. A Justiça seria somente o primeiro dos alvos desse novo governo.
E por que só agora? Netanyahu sempre formou governos com alas mais moderadas e mais radicais do que ele, de modo que pudesse estar ao centro e responsabilizar uma dessas alas pelos fracassos possíveis do governo. Desta vez, Netanyahu formou um governo somente com partidos mais radicais que o Likud, alguns de extrema-direita, com viés abertamente racista, xenófobo, homofóbico, sexista e beligerante. O próprio Likud, inclusive, está repleto de membros que jamais seriam deputados há 20 anos, com mentalidade radical e autoritária. Se antes a guerra contra os pkidim era mais retórica, agora virou uma realidade incontrolável. Mas o próprio Netanyahu parece ter entrado de cabeça nessa pauta. Alguns dizem que isso se deve à lealdade ao seu número 2, Yariv Levin. Outros dizem que é uma vingança contra o Judiciário, que o transformou em réu. Seja o que for, o fato é que Netanyahu hoje é um líder cujo projeto de poder se assemelha ao de Viktor Orban ou Tayyip Erdogan.
A população está atenta, e protesta às dezenas de milhares todas as semanas nas grandes cidades do país. Intelectuais produzem constantes manifestos em defesa da democracia. 280 economistas escreveram uma carta pública contra a reforma. Grupos de representantes do hi-tech, diretores dos principais bancos de Israel, que temem represálias internacionais, se somaram à luta. O prêmio Nobel de economia, Daniel Kahneman, também detonou a reforma. O atual presidente e um dos mais famosos ex-presidentes do Banco Central de Israel, que nunca se manifestam politicamente, foram a público alertar para as consequências negativas da reforma na economia do país.
A própria presidente da Suprema Corte, Esther Haiut, e a Conselheira Jurídica do Governo, Gali Baharav-Miara, também atacaram a reforma publicamente, acusando o governo de tentar destruir o poder judiciário. São diversas as reações, desde grupos de direitos humanos até diretores de empresas de hi-tech, deixando os políticos da oposição em segundo plano na liderança das manifestações.
O presidente Itzhak Herzog propôs uma comissão para avaliar a reforma e chegar a um meio-termo, o que foi aceito por alguns dos políticos de centro da oposição. Mas o governo não aceita. E, convenhamos, qual o meio-termo entre acabar ou não acabar com o Judiciário? Por enquanto fica o impasse e a ameaça de destruição da democracia israelense, que já é bastante problemática em diversos fatores. Um país que já tem grandes dificuldades de lidar com o fato de ser uma democracia e um Estado judeu, e que há quase 56 anos subjulga outro povo a um regime de ocupação que corrompe a sociedade internamente, já possui uma democracia interna bastante frágil. O governo atual parece estar disposto a destruí-la. Terá ele força?
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Foto de capa: Own Work (Nizzan Cohen)
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