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Falsa simetria



Originalmente publicado em 18/05/2021, no Conexão Israel


Ao desenvolver sua teoria para o Estado judeu, Theodor Herzl imaginava uma relação cordial com a população árabe que habitava a região. Segundo o pai do sionismo político, a imigração judaica de diversos lugares do mundo, traria junto uma mentalidade liberal, levando ao progresso da região, do qual os nativos também seriam beneficiados. Outro intelectual orgânico do movimento sionista, Aharon David Gordon, fortemente influenciado pelas ideias naturalistas, acreditava que, a partir do trabalho no campo e do contato com a natureza, o povo judeu recuperaria sua identidade com a Terra de Israel, equiparando-se aos árabes. Parafraseando-o, o caminho para as boas relações se veria através do trabalho ombro a ombro entre judeus e árabes pelo bem comum da mesma terra. Uma perspectiva até certo ponto romântica, segundo nosso olhar contemporâneo. Dor Ber Borochov, maior expoente da corrente marxista do sionismo, citava que as diferenças entre judeus e árabes seriam abolidas quando ambos compreendessem seu papel semelhante na luta de classes contra os verdadeiros inimigos, a burguesia e o imperialismo. Desta maneira, judeus e árabes naturalmente tornar-se-iam aliados na revolução socialista e atuariam em conjunto por tal fim.


Há ainda outros teóricos do sionismo com visões otimistas sobre a cooperação árabe-judaica na Palestina, os quais acreditavam no caminho da coexistência, pelos mais diversos motivos. Mas nos concentramos justamente no primeiro e maior ícone da teoria oposta a esta visão, Ze’ev Jabotinsky. 


Criador e principal figura do sionismo revisionista. Jabotinsky não acreditava na coexistência entre judeus e árabes no Estado judeu desde suas origens. Em seu mais famoso artigo, “A Muralha de Ferro”, Jabotinsky defendia a ideia de que um povo nativo jamais aceitará a colonização de sua terra, não importa as boas intenções que os colonizadores tenham, pois é de sua natureza defender seu território. Sua teoria foi construída após os anos 1920, posteriormente às de Herzl, Gordon e Borochov (elaboradas entre 10 e 30 anos antes), o que permitiu ao pensador revisionista acompanhar o surgimento do nacionalismo árabe na Palestina e os primeiros conflitos com os judeus no início da terceira década do século XX. A proposta de Jabotinsky, então, era a de uma metafórica “muralha de ferro”. Uma fortaleza que separasse e protegesse a população judaica, irredutível à pressão árabe, poderosa o suficiente para mostrar aos árabes a total impossibilidade de impedir o sionismo de alcançar seus objetivos: o assentamento da Palestina e a criação de um Estado de maioria judaica. Para Jabotinsky, somente após sucessivas tentativas frustradas de atravancar a realização do empreendimento sionista, as forças radicais e intransigentes dariam lugar aos moderados, com quem seria possível dialogar, dar-lhes direitos básicos, como garantias de não-desassentamento, direitos civis e nacionais. Até então, sem dar detalhes, estaríamos separados pela “muralha de ferro”.


Ze’ev Jabotinsky morreu em 1940, antes da criação do Estado de Israel. Nos anos 1930, ele rompeu com o movimento sionista oficial e criou sua própria organização paralela: o Movimento Sionista Revisionista. Durante estes anos, Jabotinsky tornou-se arqui-inimigo de David Ben-Gurion, presidente da Agência Judaica e futuro primeiro-ministro do Estado de Israel. A briga foi tamanha, que só foi permitido trazer ao Estado de Israel os restos mortais de Jabotinsky quando Ben-Gurion deixou de ser primeiro-ministro. Ben-Gurion acusava Jabotinsky e o movimento revisionista de flerte com o fascismo, de indisciplina perante as decisões tomadas de forma majoritária pelas correntes do movimento sionista, e de lacaio da burguesia internacional. Jabotinsky considerava Ben-Gurion autoritário, displiscente com o direito histórico do povo judeu por toda a Terra de Israel e de vendido às ideias socialistas antijudaicas. Ben-Gurion, no entanto, não discordava de Jabotinsky sobre a forma como o Estado judeu deveria lidar com a população árabe autóctone (ou ao menos não tornava público nenhum pensamento divergente).


Antes da criação do Estado de Israel, eram latentes as diferenças entre as visões das milícias sionistas ligadas a Ben-Gurion (a Haganá, por exemplo) e a Jabotinsky (Etzel e Lechi). Enquanto a Haganá realizava sobretudo ações de boicote a instalações britânicas e de defesa a ofensivas de gangues árabes, o Etzel e o Lechi eventualmente faziam operações de ataque e retaliações a vilarejos árabes. Após a criação do Estado de Israel, principalmente durante a Guerra de Independência (1947-49), a Haganá - e, posteriormente, as Forças de Defesa de Israel (FDI) - cada vez mais realizavam ataques a aldeias e cidades árabes. Não com a mesma intensidade que o Etzel, cabe ressaltar. Mas essa tornou-se uma prática cada vez mais comum. Ben-Gurion assimilou a teoria da “muralha de ferro” sem dizê-lo abertamente. 


Daí em diante as evidências desta constatação são muitas: a política de retaliações foi uma arma frequentemente utilizada por todos os governos do Mapai (Partido dos Trabalhadores de Israel, chefiado inicialmente por Ben-Gurion). Ainda que não tenha havido uma ordem explícita, são numerosos os casos de expulsões de populações árabes durante a Guerra de Independência (e algumas vezes também posteriormente). E os cidadãos árabes-israelenses, aqueles que permaneceram nas fronteiras do Estado de Israel após a guerra e receberam cidadania, foram submetidos a um regime militar, com toque de recolher e exigência de permissão especial para deslocamento interurbano (até mesmo para parlamentares árabes). Esta última condição foi removida somente em 1965, sob o governo de Levi Eshkol, substituto de Ben-Gurion.


Se bem desde então a população árabe já não é mais submetida a políticas de exceção, é inegável que tais fatos marcaram fortemente a memória coletiva dos árabes-israelenses e a sua relação com o Estado, tanto no plano simbólico, como também condicionaram fortemente a situação social desta população. Desde que o Estado de Israel foi criado, não foi construída nenhuma cidade árabe no país. A população árabe-israelense se multiplicou por 11 desde então, enquanto viam serem construídos centenas de assentamentos e cidades judaicas no país, além de bairros judaicos em diversas cidades anteriormente de população árabe. Aliás, a separação entre judeus e árabes no país se vê em todos os aspectos: há somente cinco cidades com população mista (onde uma das duas populações representa ao menos 10% da população total da cidade). Se é certo dizer que as cidades e aldeias árabes são significativamente mais pobres que as judaicas, isso vale também para bairros árabes das cidades mistas. A separação geográfica existe igualmente nas cidades mistas, e ela se mostra de todas as maneiras.


 Além disso, os indicadores sócio-econômicos são alarmantes. Segundo o Banco de Israel (banco central do país), o orçamento destinado pelo Estado à educação das crianças do ensino fundamental 2 (entre 11 e 14 anos) é de 25 shekels por mês por um aluno árabe e de 32 shekels por aluno judeu. Segundo o exame internacional Pisa para avaliação de ensino médio, os estudantes judeus possuem notas que acompanham a média dos alunos dos países da OCDE, enquanto os árabes têm resultados entre 20 e 30% abaixo da média. Isso se reflete no título da bagrut, exame que certifica a conclusão do ensino médio: em 2016, 79% dos alunos judeus possuíam tal certificado, enquanto somente 63% dos árabes eram aprovados nos exames. Não há hoje em Israel nenhuma universidade que lecione em árabe, o que dificulta o acesso da população árabe aos estudos superiores e à vida acadêmica. O desemprego também é estarrecedor: em 2019, cerca de 35% dos cidadãos árabes-israelenses não trabalhavam, enquanto o desemprego na sociedade judaica era de 8%. Isso tem clara influência nos salários: uma família árabe tem vencimentos de, em média, 14 mil shekels por mês, enquanto o de uma família judia é de 21 mil shekels. E a cereja do bolo é a violência urbana: enquanto o crime organizado na sociedade judaica foi praticamente desmantelado pela Polícia nos últimos 10 anos, as gangues e organizações criminosas seguem atormentando as vidas da população árabe-israelense: há 10 vezes mais homicídios de árabes do que de judeus no país.


Também vemos amostras de racismo no nosso dia-a-dia: há pouco tempo, a empreiteira que venceu a licitação do Estado para a construção e venda de moradias populares, foi descoberta recusando a venda para cidadãos árabes na cidade de Beer-Sheva. Após uma reportagem profunda do Canal 12 de televisão, percebeu-se que essa era uma prática comum em cidades judaicas e mistas. Cidadãos árabes frequentemente são revistados e têm como exigência mostrar seu documento de identidade ao entrar em um edifício público, algo incomum a judeus - especialmente de origem ashkenazita como eu. Mesmo que tenha aumentado a participação de trabalhadores árabes em empresas de alta tecnologia, ainda são pouquíssimos os que conseguem tal proeza.


Quem também tem um papel especial é a Knesset, que recentemente tem sido bastante hostil ao status de minoria nacional dos árabes israelenses. A Lei Nacional do Povo judeu (leia aqui) é um claro exemplo disso, quando, entre outras coisas, retira do árabe o status de idioma nacional do país. Um dos projetos apresentados visava dar o direito de localidades em Israel declararem-se judias, e, portanto, proibir a entrada de não-judeus. Além da Lei Nacional, foram inúmeras as tentativas de proibir candidaturas e partidos de eleitorado árabe de concorrer nas eleições nos últimos 15 anos, investida na maioria das vezes frustrada pela Suprema Corte. Por último, vale lembrar que uma das polêmicas atuais é ocasionada por uma lei que restitui a antigos donos o direito a propriedades adquiridas antes de 1948 em Jerusalém oriental. Esta lei favorece os judeus, que possuíam imóveis em Jerusalém oriental, e que os perderam quando foram expulsos de suas casas durante a Guerra de Independência. A lei, no entanto, vale apenas para cidadãos israelenses - não inclui a grande maioria dos árabes de Jerusalém oriental nem palestinos da Faixa de Gaza, da Cisjordânia ou de qualquer outro país. Em outras palavras, um palestino habitante de Nablus, mesmo que tenha como provar a propriedade sobre uma residência em Haifa de antes de 1948, não terá direito à restituição de sua casa, enquanto um israelense pode reivindicar essa propriedade. Baseado nesta lei, quatro famílias judias visam recuperar suas residências no bairro árabe Sheikh Jarrah, o que deu início a uma onda de protestos que culminaram na situação atual.


Recentemente, explodiram as revoltas árabes pelas ruas de Israel (leia aqui), tanto nas cidades árabes quanto nas mistas. As revoltas eram violentas, com ações inaceitáveis, como ataques a civis indefesos, destruição de sinagogas e de propriedades de judeus e intimidações sem fim. Alguns compararam tais atos com pogroms, que, a meu ver, é descabida, pelo simples fato de que os pogroms terem como característica básica o fato de que foram incentivados pelo próprio Estado, usando os judeus (totalmente indefesos), uma minoria, como bode expiatório. No entanto, a destruição de sinagogas e ataques a judeus nas ruas de alguma maneira têm semelhanças com os ataques sofridos por judeus na Europa Oriental desde o fim da Idade Média até metade do século XX. Paralelamente, e igualmente inaceitável, gangues de judeus de extrema direita passaram a destruir patrimônio e promover linchamentos de árabes nas ruas do país. Em cidades mistas houve grandes confrontos entre os grupos de árabes e judeus, o clima de guerra civil era vivido por todos os lados. A tensão permanece no dia de hoje, embora os relatos tenham sido bem menos frequentes. A situação criada pela guerra com o Hamas e a Jihad Islâmica na Faixa de Gaza acirrou os ânimos e encorajou os atos de violência dos dois lados da mesma maneira que o cessar-fogo tratou de acalmar a situação.


Na mídia e entre políticos israelenses, rapidamente surgiu um debate sobre a semelhança entre as ações de gangues judias e árabes, e se há alguma simetria entre os dois atos. Jornalistas ligados à direita judaica, como Amit Segal, do Canal 12, afirmam ser falsa a ideia de que haja qualquer simetria. Ele acusava a população árabe de ações muito mais violentas e a mídia de fazer escarcéu com atos de violência de grupos judaicos, criando uma imagem de semelhança inexistente. Outros fizeram coro com o discurso de Segal, sobretudo trazendo dados sobre a violência na sociedade árabe-israelense como um indicador de que o ímpeto dos árabes era distinto por natureza. O argumento central é o de que os árabes são mais violentos por natureza, e não cabe lugar para comparações nem simetria.


De fato, as ações ocorridas dentro da sociedade árabe foram, ao todo, violentas e bem mais numerosas. Embora eu me recuse a aceitar que os linchamentos provocados por judeus sejam casos isolados - não o são -, de fato foram mais repudiados e menos frequentes. Não há como ver simetria entre os dois casos, como não há como exigir simetria entre duas populações cuja relação com o Estado é totalmente distinta uma da outra. Os árabes-israelenses, apesar de cidadãos com plenos direitos em teoria, são, como vimos ao longo deste artigo, vítimas de discriminação por parte do Estado com frequência desde a sua criação. São socialmente marginalizados, humilhados por propostas de leis xenófobas e racistas e excluídos por ações de setores da sociedade sem que haja punição nem correção adequadas. Além disso, carregam consigo um histórico de opressão e restrições desde a criação do Estado de Israel, e que se torna mais intensa quando nos damos conta de que os palestinos, que hoje vivem na Cisjordânia e na Faixa de Gaza são, por muitas vezes, parentes próximos dos cidadãos árabes-israelenses. Ao tomar conhecimento de que o FDI bombardeia Gaza deixando dezenas de mortos, ou invade casas na Cisjordânia e limita a passagem de palestinos de uma localidade a outra através de checkpoints, os cidadãos árabes de Israel não ficam e nem teriam como permanecer indiferentes.

Todos estes tristes acontecimentos em Israel estão ocorrendo justamente quando, pela primeira vez na história do país, um partido árabe não sionista (Ra’am) estava por formar parte de uma coalizão governista. Este processo, aliás, se iniciou em 2019, com um famoso discurso de Ayman Odeh, líder da lista de partidos de eleitorado árabe (Lista Unificada), no qual falava sobre a cooperação árabe-judaica e o momento em que os dois povos pudessem participar de um governo em conjunto. De repente tudo ruiu, como um castelo de cartas armado sob uma base muito frágil.


A grande questão é que, apesar dos esforços de certa parcela da sociedade, o Estado de Israel jamais deixou de tratar os árabes do outro lado da “muralha de ferro”. A prova mais recente é o fato de que, até agora, 160 árabes foram indiciados pelos confrontos das últimas semanas contra somente três judeus. Ainda que os eventos não tenham simetria, a proporção de 160 x 3 é totalmente absurda, e mostra a maneira como o Estado trata a população árabe em comparação com a judaica. Os árabes recebem a mão forte do Estado, são submetidos a frequentes humilhações, são desprovidos de cidadania por ações do executivo, e deles é exigido um comportamento simétrico ao dos judeus em Israel. Aos árabes-israelenses, a quem o Estado marginaliza e oprime, exclui e ignora, é cobrado lealdade, tolerância e “civilidade”. O que esperar de uma minoria nacional, cuja nacionalidade segue sem ter suas aspirações realizadas, e, enquanto minoria é discriminada pelo próprio Estado? Certamente não se pode esperar comportamento semelhante ao dos judeus, com quem o Estado cumpre suas funções de forma bem mais próxima do razoável. A violência contra civis indefesos é sempre condenável, o caminho da civilização é sempre preferível à barbárie e isso vale para os dois povos. O debate não é sobre a legitimidade do uso da violência, mas sim sobre a reação que um segmento da sociedade tem quando tratado pelo Estado de forma discriminatória.


Jabotinsky finaliza seu artigo afirmando que “o único caminho pelo qual se poderá obter um acordo (com os árabes) no futuro, é deixando de lado qualquer intento de acordo no presente”. Pois bem, já são 73 anos de “muralha de ferro”, sem acordo, com o braço forte do Estado. Não é uma política pública adotada somente pela direita sionista, os governos de esquerda também lançaram mão (alguns em maior, outros em menor grau) da “muralha de ferro”. Até quando o Estado de Israel seguirá investindo nessa política pública, que, além de imoral, se mostra ineficiente e com grandes prejuízos ao Estado?

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