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Eu sei o que vocês fizeram no verão retrasado


Originalmente publicado em 21/06/2013, no Conexão Israel           


As recentes manifestações no Brasil me inspiraram a escrever sobre um capítulo bem recente da história israelense, que, ao que tudo indica, será rapidamente arquivado junto a outros acontecimentos de pouca importância, e lentamente esquecido pela opinião pública. Trata-se das manifestações por justiça social ocorridas nos verões de 2011 e 2012, deveras distintas entre si, mas que devem ser analisadas em conjunto. O povo saiu às ruas, e, através de marchas nas principais cidades do país com direito a acampamentos populares, exigiu justiça social dentre outras coisas. As manifestações não foram incitadas por nenhum partido político nem movimento pré-existente, e não houve nenhum ato de violência no seu primeiro ano. Sua duração foi de dois verões, os de 2011 e 2012, tal qual temporadas de séries televisivas norte-americanas. Veremos agora um pouco da cronologia da chamada em hebraico hamechaá hachevratit (Protestos Sociais) e as suas consequências, de acordo com a minha visão, obviamente.

 

São muitos os precedentes, mas o consenso é que o boicote ao queijo cottage foi o pai fundador das manifestações. Eu estava entrando em meu último mês de serviço militar em junho de 2011, e, como quase todo soldado neste país que serve em um quartel fechado era um tanto quanto alienado em relação a tudo o que ocorria na "vida civil". Por estas e outras, eu (que não como cottage) fiquei sabendo do boicote só mais de um mês depois, quando havia uma multidão acampada próxima à esquina de onde se localizava o apartamento onde eu vivia com dois amigos, em Tel-Aviv. Para quem não sabe, o cottage foi criado e desenvolvido em Israel e é um alimento básico na dieta do israelense médio. Devido ao fato de a religião judaica não mesclar carne com leite, em Israel há uma cultura, inclusive entre os seculares, de realizar só uma refeição à base de carne por dia, em geral o almoço. Sendo assim, café da manhã e jantar passam a ser refeições à base de leite, e o cottage pode ser o alimento que contém proteína nas duas. A principal marca produtora do queijo no país decidiu elevar o seu preço em porcentagem exagerada, o que levou a população a organizar um boicote através das redes sociais (especialmente o facebook, muito popular no país) à marca. Tal ação teve efeito imediato, sobretudo após a adesão de mais de 100 mil pessoas. O preço do cottage caiu, o que foi comemorado pelos internautas ativistas.

 

Pouco menos de um mês depois, a estudante de edição de vídeo Daphne Leef, de 25 anos, foi obrigada a buscar um novo apartamento após ser informada que não teria seu contrato de aluguel renovado por motivo de reforma no seu edifício. Após algumas semanas de busca, Daphne se deparou com preços muito elevados em toda a região metropolitana de Tel-Aviv, que impossibilitavam a jovem de viver próxima ao centro da cidade. Ela, então, recorreu ao facebook avisando a seus amigos e conhecidos que, devido ao alto preço do aluguel na cidade, ela agora passaria a habitar uma barraca no Boulevard Rothschild, convocando seus amigos a juntar-se a ela em forma de protesto. Em duas semanas, tanto o Blvd Rothschild em Tel-Aviv quanto a Praça Sião em Jerusalém estavam tomadas por barracas, algo nunca visto antes no país.

 

A concentração de jovens insatisfeitos acampados nas ruas foi só o começo. As ações individuais de pessoas isoladas rapidamente, através do uso de redes sociais na internet, tornou-se um movimento social que se opunha ao alto custo de vida em Israel, sobretudo o preço do imóvel nas grandes cidades. A União dos Estudantes, os movimentos ecológicos e os movimentos juvenis sionistas declararam apoio ao movimento. Os acampados em Tel-Aviv, então, marcaram através do facebook uma passeata em um sábado à noite (23/07), na qual compareceram mais de 30 mil pessoas. Este foi meu penúltimo fim de semana como militar, e confesso não estar compreendendo absolutamente nada do que estava acontecendo. Achava que era uma simples manifestação local, com pouca importância, e não me empolguei quando Jerusalém também marchou (em número 30 vezes menor, é verdade) a favor de justiça social.





Minha liberação do exército, no entanto, coincidiu com a segunda passeata, marcada para o sábado seguinte. Toda a cidade de Tel-Aviv estava contagiada pelos protestos, e justo no meu primeiro fim de semana civil após o serviço militar, decidi me juntar aos manifestantes e marchar contra o alto custo de vida. Mais de 80 mil pessoas protestavam em Tel-Aviv pedindo por justiça social. Parte recomendava o 1º Ministro a renunciar. Parte se voltava contra os magnatas e a corrupção dos mesmos. Gritos como “Dimona[ref]Cidade localizada ao sul de Beer-Sheva, uma das mais pobres do país[/ref] e Tel-Aviv, a mesma revolução” ou “Desça para as ruas!”, ecoavam  nas ruas da maior metrópole do país. E não parou por aí. Ao chegarmos à praça onde se encerrou a passeata, escutamos os discursos dos organizadores, entre eles os atuais parlamentares do Partido Trabalhista Stav Shafir e Itzik Shmulik, além da já citada Daphne Leef. Esta última, inclusive, afirmou: “Nós não estamos (sic) aqui para dar as cartas no jogo. Nós viemos (sic) para mudar de uma vez as regras do jogo”. Discurso revolucionário, aplaudidíssimo por todos. Eu me sentia fazendo parte de algo grande.


Durante a semana só se falava na passeata do sábado anterior e da que aconteceria em uma semana. O Blvd Rothschild estava cada vez mais abarrotada de barracas, já não se podia pedalar na sua ciclovia. Outras ruas foram tomadas, como os Blvd Ben-Gurion e Nordau (esta, sobretudo, por famílias jovens). Os cartazes acumulavam-se, os acampados viravam a noite em rodas de violão, cinemas populares e mesas redondas sobre todos os temas imagináveis, tendo a política israelense como destaque. No sábado seguinte, como já estava marcado, aconteceu outra passeata: 350 mil pessoas ocuparam as ruas de diversas cidades, sendo mais de 200 mil em Tel-Aviv. O protesto, muito similar ao anterior, me marcou por acontecimento: em Jerusalém, quando um dos líderes das manifestações subiu ao palanque e deu início a um discurso contendo uma série de críticas ao governo, foi vaiado de forma que não conseguiu prosseguir discursando. O argumento dos que o vaiaram era de que o protesto não era contra o governo, mas contra o alto custo de vida. Curioso, não? De fato quase não se viam bandeiras, cartazes e camisas de partidos políticos. O Partido Trabalhista estava se reformulando após o seu ex-líder, Ehud Barak, ter se retirado do partido junto a outros quatro parlamentares por discordar da decisão de abandonar o governo, tomada pela maioria meses antes. Os manifestantes, em reunião com a até então líder da oposição Tzipi Livni (na época do Kadima), alertaram-na de que não queriam que políticos se aproveitassem destas passeatas para popularizarem-se. Fizeram questão de mostrar que não desejavam vincular-se a nenhum partido. Quando afastaram os políticos, no entanto, optaram não só por não vincular-se a partido algum, mas também rejeitaram o rótulo de oposicionistas. Voltaremos aos problemas desencadeados por isto mais tardiamente.


Neste momento eu já não estava mais tão encantado com os protestos. Quem conhece um pouco de política israelense sabe que a temática social sempre esteve em segundo plano, principalmente por causa do conflito com nossos vizinhos. O que mais me desagradou, entretanto, foi perceber que o governo não era alvo das manifestações de forma oficial nem consensual.

 

Viajei ao Brasil para passar férias com a minha família e não observei de perto as duas últimas grandes passeatas: a passeata da periferia, quando 75 mil manifestantes de cidades menores protestaram no sábado seguinte (Tel-Aviv e Jerusalém tiveram um descanso), e na semana seguinte a famosa passeata do milhão de Tel-Aviv (que na verdade contou com 300 mil na cidade e outros 160 mil no resto do país). A semana anterior havia sido marcada pela ocupação de prédios desabitados por manifestantes, e seguiu-se com a advertência dos mesmos de que caso Netanyahu não tomasse providências em um mês (antes de que a Knesset voltasse do seu recesso), eles tomariam as ruas sem a permissão da polícia (em Israel, qualquer manifestação com mais de 50 pessoas deve obter uma autorização especial da polícia, que pode vetar o percurso da mesma e indicar um horário mais apropriado).

 

Netanyahu agiu: convocou uma comissão para estudar as exigências dos manifestantes. Ao mesmo tempo, o prefeito de Tel-Aviv, Ron Huldai, convocou a polícia para evacuar os acampamentos. Os poucos que resistiram foram retirados à força. O verão terminava, e acampar na rua durante o inverno chuvoso do litoral israelense não seria tarefa das mais fáceis. Além disso, parte dos manifestantes acreditava que seu objetivo havia sido cumprido: Netanyahu não poderia mais ignorar a demanda do povo por uma solução dos problemas causados pelo livre mercado. O preço do aluguel, a especulação imobiliária, o custo de vida já alto e ainda mais crescente após a crise econômica mundial, e o desemprego da mão de obra qualificada jovem deveriam entrar na pauta do governo. Mas o movimento tinha outro problema: apesar da existência de alguns líderes e mentores intelectuais (como o professor da Faculdade de Educação da Universidade Ben-Gurion, Yossi Yona), o grupo não possuía uma posição homogênea. Alguns gritavam contra o primeiro-ministro, outros o protegiam. O Movimento dos Reservistas Otários surgiu em meio às manifestações, exigindo o serviço obrigatório a todos (mas direcionado aos ultra-ortodoxos, que em sua maioria são dispensados), enquanto alguns grupos de judeus ultraortodoxos participavam dos protestos oficialmente. 96% da população apoiava as manifestações, que ficaram conhecidas como “O Protesto Social”, e era difícil identificar qual era a sua cara.

 

Pouco menos de um mês após os protestos terem fim (ou trégua), Israel se viu envolto em uma polêmica internacional: a Autoridade Palestina (AP) foi à ONU unilateralmente tentar que a organização reconhecesse o Estado Palestino através de uma votação extraordinária. O Conselho de Segurança vetou a decisão, mas toda esta polêmica foi suficiente para que o tema dos protestos sociais não estivesse mais na pauta do governo. A Lei Tal, que garantia a dispensa do serviço militar a estudantes de academias rabínicas, expirou no inverno, e a proposta de uma nova lei de serviço obrigatório universal causou a entrada do partido Kadima, até então o maior da Knesset, na coalizão de Netanyahu em um governo de união nacional (que durou somente 40 dias). O governo Netanyahu lançou um pacote econômico que continha uma série de cortes nos Ministérios da Educação, Habitação, Saúde e Transporte, e a inflação aumentava de forma que, após os protestos, o custo de vida só havia subido.


Com eleições marcadas para janeiro de 2013, parte dos manifestantes do “Protesto Social” decidiram reencontrar-se no verão de 2012. As primeiras manifestações (que igualmente ocorriam em todos os sábados) se diferenciavam muito das anteriores: o número de manifestantes era muito menor; a participação de movimentos sociais e partidos políticos não era mais mal vista; o governo era o principal alvo dos protestos; e atos de violência (escassos) e de desobediência civil (mais frequentes) foram mais comuns. O ápice do movimento se deu quando o Moshe Silman, vítima de um acidente que o tornou deficiente físico durante o tempo no qual prestou o serviço militar, decidiu em meio a uma passeata atear fogo sobre o próprio corpo, suicidando-se na Rua Kaplan. Silman, em carta deixada ao movimento, acusava a Previdência Social de abandonar os portadores de deficiência na miséria, e dizia estar desesperado com a quantidade de dívidas a pagar e com a sua péssima condição financeira. Ele se tornou um mártir dos protestos, que passaram a ser mais frequentes (não só uma vez por semana) e menos obedientes. Eu, particularmente, compareci a boa parte dos que ocorreram em Tel-Aviv, e presenciei manifestantes fechando ruas de forma ilegal, assim como uma repressão violenta da polícia, sempre ao terminar a passeata, quando o número de manifestantes era ínfimo. Havia policiais à paisana, trajados como civis, filmando os ativistas e ameaçando-os quando questionados, muitas vezes deixando transparecer que eram policiais. Em algumas ocasiões a polícia agiu com truculência. O movimento perdeu o seu apoio popular e foi criminalizado pelo governo. Daphne Leef, inclusive, foi presa em uma destas manifestações após ter seu braço fraturado, sem direito a atendimento médico. Ao fim do verão, sobretudo após a Operação Coluna de Fogo (contra o Hamas em Gaza), já não se falava mais em protestos. O orçamento aprovado nesta semana é justamente o oposto do que os manifestantes exigiam: cortes no social e aumento no custo de vida. Os protestos fracassaram? Eu diria que sim.

 

Com exceção da Comissão Trajtenberg, nada mais surgiu destas manifestações. Dois de seus líderes se encontram atualmente na Knesset, ambos na oposição. O Partido Trabalhista, para onde migrou a maior parte dos líderes dos protestos, foi um dos grandes derrotados nas eleições. O partido desenvolveu um elaborado programa de bem estar social a partir de uma reforma tributária e acabou alcançando somente o terceiro lugar, com 15 assentos no parlamento. Mas isto, em minha opinião, é justificável. Além da clara influência da guerra com o Hamas, que ultimamente tem fortalecido a direita, a falta de envolvimento político dos líderes das manifestações fez com que o governo Netanyahu não se sentisse ameaçado, pois a maior parte da população israelense, por mais absurdo que seja, parece não ter identificado os protestos como uma crítica ao governo. No auge das manifestações em 2011, a parlamentar do Likud, Miri Regev acusou Daphne Leef de ser uma “ativista da extrema esquerda”. Leef, ao invés de corrigir o “insulto” e dizer qual era a sua posição, optou por afastar-se deste caminho, afirmando que a luta era acima de tudo social e não política, como se isso fosse possível. Quando os trabalhistas, através da sua nova líder Shely Yechimovitch, aproximaram-se dos protestos e recrutaram seus líderes, o momento já não era propício.


Os protestos falharam não só quando optaram por não carregar uma bandeira, mas, principalmente, por insistir no “sem nenhuma bandeira”. O movimento tornou-se vazio, demasiadamente pós-moderno. Não havia um corpo social ali, havia milhares de indivíduos, cada um marchando por uma causa, dono de uma crítica, mas sem nenhuma proposta. Netanyahu não foi ameaçado em nenhum momento, talvez seja justamente por isso que não houve nenhuma mudança significativa. Melhor dizendo, tudo o que aconteceu de relevante na economia israelense foi o corte no investimento social. E o pior de tudo, não há uma autocrítica aos protestos, que parecem já ter caído no esquecimento. Sair pelas ruas aos sábados à noite gritando por justiça social parece ter sido apenas um sonho de verão. Verão este, distante, que hoje é recordado muito mais como uma festa do que como uma luta popular. Perdemos a chance de fazermos história. Que pena.

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Nota do autor de abril de 2024: naquele momento, por estar há pouco tempo em Israel, por imaturidade ou qualquer outra razão, eu não fiz qualquer relação entre a soltura do soldado Gilad Shalit com os protestos. Shalit estava preso desde 2006 na Faixa de Gaza, após ser sequestrado por membros do Hamas, que conseguiram cruzar a cerca por meio de um túnel. Havia uma enorme comoção pela sua soltura, que foi finalmente acordada no dia 06/10/2011, quando o soldado foi trocado por 1027 prisioneiros palestinos. A época coincidia razoavelmente com a evacuação forçada dos acampados em Tel-Aviv. Diversos analistas apontam a libertação de Shalit como uma manobra de Netanyahu para desviar o foco dos protestos.

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