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Entre genocídio e dano colateral


Originalmente publicado em 14/07/2014, no Conexão Israel            

            

Preciso desabafar. Peço desculpas aos leitores que nada tem a ver com o que eu estou sentindo. A verdade é que este conflito é uma droga, e me coloca em uma situação muito difícil. Cada vez mais. Fico deprimido ao ler nas redes sociais comentários, textos e depoimentos infelizes de pessoas inteligentes. Estou seguro de que o conflito entre Israel e os palestinos é o que mais desperta, ao mesmo tempo, a atenção e o ódio entre as pessoas. Ambos, atenção e ódio, são despertados de modo desproporcional. E isto, além de cegar as pessoas, traz uma visão monolítica sobre o assunto e, muitas vezes, desvios morais. Vejo gente de caráter, com valores, defendendo a qualquer custo posturas que não aceitariam caso os personagens fossem outros. Por muito tempo eu preferi crer no contrário, mas já não consigo.


Vou começar pelo mais fácil: o Hamas e os fundamentalistas islâmicos. Não acho que seja possível escrever qualquer coisa sobre o conflito sem destacar o controle do Hamas na Faixa de Gaza, e a sua intolerância em relação a Israel. Não é segredo para ninguém que Gaza, controlada pelo Hamas desde 2007 (leia aqui meu artigo sobre a história do conflito entre israelenses e palestinos), se caracteriza por ter uma população pobre, que quase não goza de direitos sociais, independentemente de quem a tenha governado desde sempre. O Hamas impõe no local uma ditadura ultra-reacionária, restringindo ao mínimo as liberdades civis e políticas da população, e oprimindo as mulheres, as minorias e todos os que se opõem ao grupo. A fim de angariar alguma popularidade (até as ditaduras são obrigadas a isso), o grupo desenvolve relações clientelistas e paternalistas, além de políticas de assistencialismo, aliadas à dura opressão aos opositores: uma espécie de fascismo islâmico. Durante os últimos 20 meses, duração do período de relativa tranquilidade, entre a Operação Pilar de Defesa e a atual, o Hamas adquiriu mais de 400 mísseis de longo alcance, que podem atingir até 200 quilômetros de Gaza. Administrando uma região destroçada pelas guerras, composta por uma população pobre, que carece de comida, hospitais, escolas e creches, o grupo trouxe armas para confrontar Israel e… causar a destruição de Gaza novamente! Isto não sou eu quem diz. É o presidente da Autoridade Palestina, Mahammoud Abbas (Abu Mazen). Eu estou de acordo. Isto não pode ser ignorado.


Os leitores que acompanham o Conexão Israel já devem ter tomado conhecimento de que até agora já caíram sobre Israel mais de 900  foguetes e mísseis, desde o dia sete de julho. Certamente sabem que o alarme que avisa o ataque a regiões urbanas do país já tocou em diversas localidades, sinalizando, cada um a seu tempo, a cerca de 70% da população israelense o risco de vida. Eu mesmo escutei algumas vezes esta sirene, que já destruiu cerca de 40 residências e indústrias, e deixou vários feridos (três deles em situação grave). Vocês também já devem ter lido em artigos do site que o Hamas usa civis como escudo humano, contra ataques das Forças de Defesa de Israel (FDI). Ou que o Hamas comete infrações às Convenções de Genebra, cometendo três crimes de guerra, que os caracterizam como terroristas: vestir-se como civis, esconder-se em áreas civis e disparar propositalmente contra civis. Nada disso deve ser novidade aos nossos leitores, meus colegas já tocaram nestes pontos antes. É muito difícil explicar o que se sente quando toca a sirene anunciando um ataque que põe em perigo a sua vida e a de seus familiares. Crianças tendo que correr para quartos protegidos. Pessoas surpreendidas no meio da rua, obrigadas a deitar-se no chão, cobrir a cabeça e torcer para que o foguete não vá de encontro a si mesmas. Destroços do foguete explodido no ar pelo Domo de Ferro já fizeram dois graves feridos. As sensações de medo, impotência e raiva são indescritíveis. E quando dezenas de foguetes e mísseis são disparados todos os dias contra a população do seu país, certamente o governo deve agir.


O governo israelense decidiu lançar mão de uma operação militar, que consiste basicamente de ataques aéreos, ajudado pela marinha e pelos blindados e artilharia localizados do outro lado da fronteira, visando destruir a estrutura de guerra do Hamas. Por bem, o governo ainda não optou por uma entrada terrestre, como na Operação Chumbo Fundido (2008-09). O gabinete de segurança do primeiro-ministro Binyamin Netanyahu afirma que Israel realiza “ataques cirúrgicos”, visando apenas destruir o arsenal do inimigo (que não é só o Hamas) e realizar os chamados assassinatos seletivos aos terroristas considerados mais perigosos. Até agora já são mais de 172 mortos em sete dias de operação (20 a mais que em nove dias, em 2012). O exército afirma serem mais de 40% terroristas e ativistas do Hamas e da Jihad Islâmica, e caracteriza a grande maioria dos outros mortos como acidentes, resultado de crimes de guerra do Hamas, que se mesclam entre civis, os usam de escudo humano e escondem suas armas em mesquitas, escolas e hospitais.


Entendo perfeitamente que é necessária uma reação, mas não posso estar, de nenhuma forma, de acordo com a morte de 172 pessoas em sete dias! Não posso ser complacente com 1260 feridos! Não tenho como ficar indiferente a 560 casas destruídas! E juro para vocês, não posso aceitar que pessoas preocupadas com os direitos humanos, gente que sente algo quando vê uma injustiça, seja tão fria nestes momentos e diga: “Israel está apenas se defendendo”. Pois se está, o faz de uma forma muito errada. Eu não me conformo quando gente inteligente justifica estas mortes com a frase: “A culpa é do Hamas”. Falam isso como se Israel não tivesse nenhuma responsabilidade sobre estas mortes. O exército israelense passa sim por diversos dilemas morais, e de fato, não deseja assassinar civis. Fui soldado, sei o que se ensina ali dentro, e tenho certeza do que digo. Mas tampouco tem muito apreço pelas vidas destes civis: “o alvo é o terror, precisamos defender nossos civis”, é o argumento do governo. Não é correto pensarmos que os ataques aéreos israelenses são uma simples reação natural: são fruto da escolha de um governo. Este mesmo governo sabe muito bem quais são as consequências desta ação, e na sua pesagem, opta por realizá-la. É impossível saber qual será o número de civis mortos antes de executá-la, mas é estúpido imaginar que estes serão poucos. O governo opta por uma saída que acarretará na morte de civis palestinos para defender a vida de civis israelenses. Ora, se nós combatemos o terrorismo justamente porque não concordamos com a morte de civis, faz sentido que nosso combate ao terrorismo resulte na morte de civis? Não me parece lógico. A menos que o governo assuma que as vidas dos civis palestinos vale menos do que as vidas dos civis israelenses. Isso seria racismo. E é contra isso que eu acho que devemos lutar agora.


Alguns tentam me censurar ao falar sobre proporcionalidade. Ora, o conflito é sim desproporcional por princípio: é desproporcional em intenções, quando os terroristas atacam toda a população civil israelense, enquanto Israel ataca somente a eles. É desproporcional em relação à preparação militar e tecnologia: alguns insistem em dizer que se não tivéssemos o Domo de Ferro, nosso número de mortos talvez fosse proporcional. Talvez fosse. Mas nós temos! E temos que lidar com isso! Se o Hamas não construiu abrigos para a sua população civil, não quer dizer que nós estejamos isentos de responsabilidade ao bombardeá-los. Nós temos muito mais armas, aviões, marinha, soldados, tudo! Temos até como defendermo-nos. E temos melhores intenções que eles, mas que nem sempre condizem com a prática. Se somos muito mais fortes, temos que dosar a força. Quanto mais nós matamos civis, mais nos igualamos a eles. Não é justamente isso que nos diferenciava? Que eles não têm respeito pelos seus civis? Nós deveríamos mostrar que temos. Não somos nós que enchemos a boca para vangloriar-nos de que trocamos o soldado Gilad Shalit por outros 1027 presos? Que damos à vida de um soldado o valor que eles jamais deram a ninguém? Pois talvez devêssemos dar às vidas dos palestinos este mesmo valor, ou pelo menos metade dele. E talvez bombardear menos, matar menos. Mesmo que deixemos de destruir parte do arsenal, deveríamos ser mais cuidadosos. Repito: não temos nenhum morto até agora. Não pode ser que as vidas palestinas valham tão pouco. Já sei, alguns argumentarão: o próprio Hamas não dá valor às vidas dos palestinos. Mas nós não podemos estar satisfeitos ao compararmo-nos a eles. Eles são horríveis, e nós pretendemos ser o lado moralmente certo da história. Nosso padrão de comparação deve ser outro. Perto do Hamas, qualquer um é um anjo.


Outro ponto que me incomoda é a duração desta operação. Por que não dão fim aos bombardeios agora? De que adianta que bombardeemos Gaza, realizemos uma operação terrestre, massacremos o Hamas, se sabemos que daqui a alguns meses eles terão armas ainda melhores? Você duvida? A prova está aí: em 2009 seus mísseis chegaram pela primeira vez a Beer-Sheva. Em 2012, caíram em Tel-Aviv e em Jerusalém. E agora, em 2014, atingiram Haifa. As operações não foram suficientes para dar-nos mais que alguns anos de tranquilidade. A quantidade de armas também é muito maior. Não podemos destruí-los com ações militares, necessitamos enfraquecê-los por outros meios. Se eles são tão ruins com a sua população, por que nós não ocupamos o vácuo e somos os bons? Por que o governo israelense não aproveita a união entre Fatah e Hamas, e incentiva Abu Mazen a levar algo de bom a Gaza? Por que insistimos em estratégias militares estúpidas, que fazem com que os palestinos nos odeiem mais e mais? Há dois erros grosseiros nesta operação: um prático e um moral. Por um lado, a operação não resolve absolutamente nada. Por outro, resulta na morte de civis e gera ódio contra Israel. Não só por parte dos palestinos.


Israel não pode ter tão pouco cuidado com as vidas palestinas, assim como seus críticos não podem ser tão ignorantes a ponto de repetir mentiras. Não há, em absoluto, nenhum genocídio, nem em Gaza, nem na Cisjordânia. Não há o desejo de matar civis palestinos. Não há limpeza de sangue. Não há por trás destes ataques absolutamente nenhuma estratégia de extermínio. Isto, obviamente, não significa que os ataques israelenses com danos a civis sejam morais. Na minha opinião, não. Não são. Devem cessar imediatamente. Assim como tampouco são os do Hamas, menos nocivos por falta de competência e recursos, não por falta de vontade. Se há uma tentativa de genocídio (e eu a questiono), ela se encontra do outro lado. Afirmar que Israel massacra populações civis ou comete genocídio é má intenção. O número de mortos palestinos desde 1948 não chega a 10% do número de mortos na Síria desde 2011, não se iguala ao número de mortos na Líbia em dois anos, e em breve será menor do que o número de mortos no Egito nos últimos três anos. Nunca vi ninguém acusar genocídio nestes países (onde tampouco há, diga-se de passagem, um genocídio caracterizado). A falta de proporção também chega aos comentaristas online, jornalistas e até a alguns acadêmicos, que permitem que sua ignorância produza mentiras, dando combustível ao antissemitismo (Leia aqui meu artigo sobre antissemitismo e antissionismo).


A violência só traz mais violência. A guerra, frequente nesta região há mais de 60 anos, não nos trouxe tranquilidade. A guerra é um método doloroso, injusto, cruel e ultrapassado para resolver os problemas aqui. Quando uma vez disseram que a melhor defesa é o ataque, parece que esqueceram de explicar que cabe interpretação na frase: o ataque não precisa ser violento. Ser ativo na expansão de cidadania pode ser considerado um ataque à intolerância, à violência, ao extremismo e à indiferença. Já me cansei de ver os problemas serem empurrados com a barriga e nos conduzirem a outra guerra, que, muito provavelmente, não será a última. Já sabemos que não podemos esperar muito mais do Hamas, da Jihad Islâmica e de outros grupos ainda mais radicais. De Israel, no entanto, eu espero, sim. Espero que passe a ver os civis palestinos como equivalentes aos civis israelenses. Que os ajude, ao invés de abandoná-los ao Hamas. Que fortaleça a oposição moderada aos fanáticos. E que não os trate como “dano colateral por culpa do Hamas”, mas sim por nome e sobrenome, como um indivíduo que sofre com a horrível situação que se perdura, e merece, assim como qualquer israelense, ser tratado como uma prioridade.

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