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Direita orgulhosa, esquerda envergonhada



Originalmente publicado em 18/01/2013, no Conexão Israel


“Ei! Você! Leia o (diário) Israel HaYom, não perca tempo com o Yediot Ahronot!”
“Por que?”
“Acredite em mim. O Israel HaYom é um jornal bem melhor.”
“Obrigado! Na verdade eu estava atrás do Haaretz, mas só havia um exemplar e alguém o pegou.”
“Haaretz? Não, não faça isso! Não leia este jornal, eles não são sionistas, são esquerdistas. Eles só reproduzem a agenda da Autoridade Palestina, fortalecem os antissionistas, é só isso que a esquerda faz! Não perca seu tempo.”
Passam-se algo como três minutos.
“Você ainda é muito jovem para perceber isso, mas os esquerdistas estão contra o Estado de Israel. Não se pode apoiar este tipo de gente.”

Este diálogo aconteceu entre um senhor de mais ou menos 70 anos e este que vos escreve, há pouco menos de três anos, em um café em Tel-Aviv. Posteriormente eu vim a descobrir que o tal senhor era amigo pessoal do ex-primeiro-ministro Itzhak Shamir, o que não alterou a minha percepção sobre o caso. Era a primeira vez que eu falava de política com um israelense desde que eu chegara ao país, e logo de cara fui censurado simplesmente por ler um jornal de esquerda. Este evento poderia ter passado despercebido, caso eu não tivesse passado por outras situações do gênero nestes meus três anos e meio aqui em Israel. Já fui chamado de traidor por defender que o governo, ao invés de investir na construção de assentamentos, utilizasse esta verba para evitar o fechamento da organização que ajuda imigrantes judeus. Fui chamado ironicamente de boa alma quando pedi um cessar-fogo na última operação israelense em Gaza (Operação Pilar Defensivo), ou quando, em uma manifestação, me posicionei contra a expulsão dos refugiados africanos. Não é esporádico. É real.


A crise da esquerda israelense está, ao mesmo tempo, inserida no contexto histórico-social israelense, e na conjuntura global. Eu destaco três aspectos para avaliá-la neste artigo: (1) a crise da esquerda não é só política, é também moral; (2) não há só uma esquerda no país, e parte dela não está em crise; (3) não somente há uma crise na esquerda, mas um fortalecimento da direita. Os pontos serão explorados em ordem a fim de que se facilite a compreensão. 


Em Israel são popularmente usados os termos “esquerdista” (smolan ou smolani/t) e direitista (iemani/t) para definir políticas públicas e visões de mundo pessoais. Mas hoje são poucos os que querem se dizer esquerdistas no país. Após a Segunda Intifada, reforçado sobretudo após o controle do Hamas em Gaza aliado ao fracasso do Plano de Desconexão, se reforçou até se consolidar na sociedade israelense uma mentalidade, não geral, mas representativa, de que os que confiam na possibilidade de negociação com os palestinos e desejam ceder territórios são traidores. Traição é um dos dois únicos casos nos quais a justiça israelense prevê pena de morte, para que o leitor tenha noção da gravidade da acusação. Aos poucos, passaram a ser acusados popularmente de traição ativistas de direitos humanos (os árabes são grande parte do setor desprivilegiado na sociedade israelense), políticos de esquerda, ativistas de movimentos pacifistas, etc. O conflito deixou de ser político e tornou-se moral. A questão era nacional, semelhante à mentalidade criada pela ditadura militar no Brasil: “ame-o ou deixe-o”. É lógico que este ethos não foi criado como uma política do Estado. Nenhum governo adotou esta mentalidade até agora, estou falando de um pensamento popular. Seria eu ingênuo, no entanto, se acreditasse que os governos nunca surfaram nessa onda.


No dia 08 de novembro do ano passado, a líder do Partido Trabalhista, Shely Yechimovicth, disse considerar o seu partido como “de esquerda” um erro histórico, para em seguida afirmar que “o Partido Trabalhista sempre teve a sua força no centro. Passaram por aqui pombas e falcões, e sempre houve um debate”. É interessante que a nova líder trabalhista, eleita justamente com o discurso de recondução do partido à volta às suas origens, afirme que o partido jamais foi de esquerda. Por mais que este discurso entre em contradição com a agenda social do Partido Trabalhista, Shely não se mostra incoerente em relação à postura a ser adotada pelo mesmo caso venha a ser governo: embora Shely claramente evite mencionar o conflito e as propostas de seu partido para alcançar a paz em entrevistas e participações na mídia, o diário Haaretz publicou no dia 23 de outubro de 2012 uma matéria na qual a candidata deixou escapar que não se difere muito de Netanyahu em pontos cruciais. Shely também é contra as pré-condições exigidas por Mahmmoud Abbas, líder da Autoridade Palestina (leia-se: o congelamento da construção de assentamentos na Cisjordânia) antes de dialogar; exige que os palestinos reconheçam que Israel é um Estado judaico e democrático; e é contra evacuar a maior parte dos assentamentos já existentes. Conclusão: se a líder do maior partido de esquerda (pelo menos tradicionalmente falando) não somente deixa de reconhecer que seu partido é de esquerda, como confirma em suas propostas, é porque deve ser muito ruim ser esquerdista neste país. Há quem acuse Shely de estar fugindo da má fama que o nome esquerdista dá. Pior ainda.


Não é só Yechimovitch que entra nesta onda. Amram Mitza, ex-líder trabalhista no início da década passada e atual número dois da lista do partido HaTnua, declarou ser seu partido de esquerda e levou uma dura da líder do partido, Tzipi Livni. Esta, que recrutou ex-parlamentares do centrista Kadima e dos trabalhistas para seu partido, recusa-se a aceitar o rótulo de esquerdista, pois de fato, não é. Mas quando chamada de direitista, parece se conformar. Para Livni o problema é ser de extrema-direita, forma pela qual ela rotula Netanyahu e seu partido. Outro expoente do bloco dos centristas, Yair Lapid, novato na política, mas com DNA de “raposa”, não permite que o enquadrem na categoria esquerdista de forma alguma. Dos três maiores alternativas ao governo atual, que devem alcançar nesta terça-feira próxima, algo entre 35-40 cadeiras na Knesset, não há um só partido que se considere de esquerda.


Os trabalhistas estiveram no poder durante o período 1948-77, e depois entre 1984-86, 1992-96 e 1999-01. Em outras palavras, foi o partido que mais vezes governou o país. Seu enfraquecimento não se dá somente pelo fracasso nos acordos de paz: os trabalhistas, salvo durante os primeiros 15 anos, jamais governaram para as classes populares. O partido negligenciou os judeus orientais, não se esforçou para reconhecer a legitimidade dos judeus etíopes, foi ineficiente no plano econômico, fracassou em tornar práticos seus projetos ideológicos, e não teve sucesso em trazer a paz. A população de mais baixa renda em Israel vota no Likud, principalmente, devido aos descasos sofridos durante os anos trabalhistas no poder.


Os sionistas socialistas já foram mais fortes, hoje passam por seu pior momento na histporia. Herdeiros do tradicional Mapam (antigo partido sionista socialista, formado basicamente por operários urbanos e membros de kibutzim), a esquerda sionista hoje tem três assentos na Knesset. É isso o que tem o Meretz, fusão do Mapam com o Ratz (ex-partido pacifista e pró-direitos humanos) e outros menos importantes. Com propostas de transformação social e acordos de paz concretos, e uma coerente luta pelas mesmas, o Meretz foi o partido que mais sofreu com a crise moral da esquerda. Em 1992, quando o povo clamava por paz, o partido alcançou 12 cadeiras, formando a terceira maior bancada no parlamento. Hoje tem só três. O Meretz, no entanto, segue sustentando um discurso orgulhoso por se dizer de esquerda (“A esquerda de Israel”, é seu lema), e a tal falta de vergonha parece resultar em algo: o partido está cotado a receber entre cinco e seis mandatos, números pouco significativos, mas proporcionalmente altíssimos. Mesmo assim, é muito pouco para o único partido que se diz sionista de esquerda. Eu presenciei na última sexta-feira, em Tel-Aviv, militantes do Meretz sofrendo ofensas de cidadãos que passavam pela rua somente por estarem divulgando o partido. No ponto em que eu estava, haviam militantes de diversos partidos, e só um foi vítima de mais ofensas que o Meretz.


O último bloco é o da esquerda não sionista, representada principalmente pelo partido Hadash. Herdeiros do Maki (antigo Partido Comunista Israelense), o Hadash tem o seu eleitorado formado basicamente por árabes. Os judeus que participam e votam no partido se encontram, em geral, nas universidades e nos círculos intelectuais, sobretudo em Tel-Aviv e em Haifa. Para este grupo de pós-sionistas, antissionistas ou, simplesmente, não sionistas, não há a menor vergonha em ser esquerdista. O Hadash não passa por uma crise moral, pelo contrário. O partido foi o único de esquerda que cresceu nas últimas eleições, passando de três para quatro cadeiras na Knesset. Os votos judaicos aumentaram, sobretudo pela popularidade do parlamentar Dov Khanin. Apesar disto, os militantes do partido são frequentemente chamados de traidores, antissionistas, e etc. A diferença do Hadash para o Meretz é que o esse não se importa por receber tais rótulos.


O fator que junta a crise da esquerda com o fortalecimento da direita se explica em uma palavra: conflito. A deterioração da relação com os palestinos, a infeliz perpetuação da calamitosa situação de inconstância militar e a sempre iminente guerra, tudo isso superdimensionado por discursos proferidos por Netanyahu e Lieberman, cujas retóricas insistem em colocar Israel em constante perigo, apontar para a instabilidade da região e causar o medo na sociedade, fortalecem a direita. E muito. Sobretudo após os fenômenos Hamas e Ahmadinejad se consolidarem como personagens no campo político israelense. 


Quem quer dialogar com os palestinos enquanto há um Hamas bombardeando o Estado? Quem quer falar em desigualdade social se em pouco tempo o presidente iraniano, que diz querer “varrer Israel do mapa” pode efetivamente consolidar-se como um produtor de armas nucleares? A situação de instabilidade bélica causa a redução da discussão política. Há exato um ano e meio, 500 mil israelenses saíram às ruas para protestar por justiça social. A situação hoje é ainda mais crítica. A especulação imobiliária segue à toda, água e eletricidade tiveram aumentos de 30% e 16% respectivamente, a gasolina chegou a ultrapassar os oito shekels por litro (aproximadamente R$ 4,00), fora o encarecimento de alimentos. O governo anunciou nesta terça-feira, uma semana antes das eleições, um grande corte no orçamento e o aumento dos impostos. E quem é o favoritíssimo para vencer as eleições? Bibi Netanyahu, ele mesmo.

Para provar que este fenômeno não é novo, cito aqui um pedaço de uma entrevista feita pelo jornalista Marcelo Kisilewsky em 2003 para o seu blog com o Dr. Yossi Goldstein, ex- diretor de Projetos Educacionais de Capacitação e Formação de Educadores Judeus da Diáspora no Departamento de Educação Judaica e Sionista da Agência Judaica


Por que o pobre vota no Likud, um partido anti-social? Por que vota no partido religioso sefardita Shas, um partido com uma imagem super social, mas que com suas ações diárias no governo e no Knesset votou sempre contra a legislação social, salvo quando concerne aos seus próprios setores? O paradoxo existe o tempo todo, a pessoa não vota de acordo com sua situação objetiva. Desconfiam, não há confiança na política e nas ideologias.  Mitzna (o candidato trabalhista) pode repetir até se cansar que tem uma plataforma social: não lhe acreditam. O Meretz pode dizer que é quase socialista, e inclusive pode demostrá-lo com leis aprovadas no Knesset e com ações passadas no governo: também não lhe acreditam. E o resultado é que a agenda das eleições continua sendo o conflito com os palestinos, e é por isso também que Sharon tem tanto êxito: acreditam que é ele que sabe enfrentar os palestinos, e não o culpam pela falta de segurança, culpam os palestinos.

Em 2003, como se pode ver, um segmento da direita já vencia as eleições se sustentando sob o discurso do medo. Interessante a informação de que, 65% dos israelenses são a favor de que se retomem as negociações com os palestinos imediatamente, e 60% são a favor de que o governo faça esforços para isso. O mais curioso é constatar que 67% dos eleitores dos trabalhistas e do partido Yesh Atid são contra a divisão de Jerusalém, enquanto (pasmem!) 57% dos eleitores do bloco Likud-Beiteynu se declararam a favor de um plano que resultaria na criação de um Estado palestino com a divisão de Jerusalém Oriental.


Esta parte da esquerda, ou melhor, a maior parte da esquerda israelense se mostra envergonhada. Se envergonha por se dizer de esquerda. Se envergonha tanto que efetivamente deixou de ser esquerdista. As direitas, não. Estão orgulhosos. Como se não bastassem a lista ultrarradical do Likud, somada ao racismo anti-árabe de Libermann e seu partido, a espantosa ascensão da direita-religiosa, personificada na figura de Naftali Bennet, ainda foi criado um partido mais à direita ainda, chamado Força Para Israel, que fala abertamente e sem nenhuma vergonha sobre a remoção dos árabes da “Terra de Israel”. O orgulho por ser de direita só faz crescer o apoio popular de determinados setores, especialmente após o Hamas demonstrar que seus foguetes já podem atingir a Tel-Aviv e Jerusalém. Não importa de qual direita, todos se orgulham deste ponto de vista. E cada vez temos menos sionistas de esquerda. Péssimo para Israel. Péssimo para a democracia.

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