Comendo o pão sírio que o Assad amassou
- 22 de out. de 2015
- 6 min de leitura

Originalmente publicado em 22/10/2015, no Conexão Israel
(Texto escrito em 18.09.2015, antes da explosão da atual onda de violência)
A trágica morte do menino curdo-sírio (foto), encontrado em uma praia na Turquia, cuja família tentava refugiar-se na Europa, teve seus efeitos também em Israel. O Estado israelense talvez seja o que menos interfere (dentre os que compõem o chamado Oriente Médio) diretamente na guerra civil que assola a Síria há quatro anos, embora seja leviano afirmar que não sofra consequências da mesma. Alguns poucos refugiados sírios feridos, famintos ou sedentos ultrapassaram a fronteira com Israel e foram acolhidos nas aldeias drusas localizadas nas Colinas do Golã. Até pouco tempo atrás, o número era muito pouco significativo, e Israel jamais abriu as portas para estes refugiados, mesmo com a iminente aproximação do Estado Islâmico (ISIS). O tema só entrou no noticiário local há poucos meses.

A primeira crise se deu no inverno: Israel bombardeou (não pela primeira vez) um território no Golã sírio, matando militantes do Hezbollah e um general iraniano. O Hezbollah, milícia libanesa xiita e inimiga de Israel, participa da guerra apoiando o presidente sírio Bashar Al-Assad, que por sua vez é inimigo de Israel e também aliado do Irã. Deve-se dizer claramente: nenhum dos grupos que tenta tomar o poder no conflito é aliado do Estado judeu. Nem ISIS, nem Assad, nem os rebeldes (em sua maioria ligados à Al-Qaeda) são simpáticos ao sionismo. O único grupo razoavelmente tolerante a Israel nesta guerra é o Exército de Libertação Curdo, que não pretende ser a força dominante em todo o território quando a guerra acabar, e não recebe nenhum apoio do Estado judeu. Israel, no entanto, por vezes realiza bombardeios pontuais na fronteira do Líbano com a Síria, com a alegação de impedir o transporte de armas ao Hezbollah. Estes ataques, até agora, não foram capazes de inserir Israel como uma peça importante no cenário da guerra civil síria. Parafraseando o ex-primeiro-ministro israelense Menachem Begin ao referir-se a guerra Irã-Iraque, o preferível para Israel é que todos os lados saiam vitoriosos nesta guerra.
O conflito na Síria, no entanto, afeta a todos (inclusive a Israel) de forma distinta. Por ser uma guerra civil marcada por crimes contra a humanidade cometidos por quase todos os lados, pelo número de mortos já ter chegado a centenas de milhares, por ter gerado uma enorme quantidade de necessitados por abrigo (leia-se refugiados), correndo real risco de vida. E Israel, mesmo sem jamais ter tido relações com a Síria, sente a pressão pela entrada destes refugiados no país. E como muitos temas delicados, este se tornou um verdadeiro dilema, que eu me proponho a explicar aqui.
Israel já vem enfrentando a opinião pública e seus questionamentos desde que refugiados sírios, escapando das batalhas na região de Quneitra (Golã sírio), começaram a entrar em Israel buscando atendimento médico, e permaneceram. O pequeno vilarejo druso Majdal Shams tornou-se um refúgio, onde puderam receber os cuidados necessários e abriram sem querer os olhos de alguns sírios à opção de ter Israel como destino seguro, mesmo sendo um país inimigo. De repente, as comunidades drusas israelenses, caracterizadas por sua fidelidade ao país, passaram a exigir do governo israelense que permitisse a entrada de drusos sírios como refugiados. O governo negou, provavelmente temendo represálias internacionais por aceitar membros de uma etnia e não de outra (em outras palavras, racismo), e optou por não aceitar ninguém. Os drusos se indignaram, e passaram a reproduzir uma postura hostil a alguns refugiados sírios que conseguiam cruzar a fronteira com Israel, chegando a promover até mesmo um linchamento.
Nada disso, entretanto, chegou a ser manchete nos principais jornais do mundo, e tampouco angariou muito espaço na opinião pública em Israel. Só mesmo a morte do menino sírio, que repercutiu em todo o mundo, fez com que a discussão sobre a entrada de refugiados sírios em Israel se tornasse pública e parte da agenda política dos partidos.
A discussão sobre a aceitação de refugiados em Israel sempre foi, ao mesmo tempo, de ordem moral e pragmática. Os sírios não inauguraram o tema: anteriormente, sudaneses e eritreus tornaram público o debate sobre o tema, embora não o suficiente para gerar a polêmica que foi o caso sírio. Parte da população (em geral apoiada pelos partidos que se situam à direita do mapa político) defende que a entrada de refugiados, em geral, facilita a infiltração de terroristas no país, um argumento de ordem pragmático. Por outro lado, parte da população (em geral apoiada por partidos de esquerda) acredita que Israel tem a obrigação de aceitar refugiados exatamente pelo fato de o povo judeu ter sofrido no passado com a negligência por parte da grande maioria da comunidade internacional, o que resultou na morte de milhões de pessoas. Um argumento de ordem moral. Assim como no caso de sudaneses e eritreus, o caso sírio levanta as mesmas argumentações.]
O pioneiro na discussão foi o parlamentar Eleazar Stern (Yesh Atid), que recomendou ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu a agir como Begin e aceitar refugiados, em menção aos vietnamitas que chegaram ao país nos anos 1970. Stern ainda afirmou que, após a Shoa, Israel não tem o direito de negar-se a receber refugiados. O líder da oposição Itzhak Herzog, fez coro com Stern, afirmando que “judeus não podem ser indiferentes a refugiados se afogando no mar”. O ministro dos Transportes, Israel Katz (Likud), respondeu a Herzog, recomendando que o líder trabalhista leve os refugiados para a sua casa. O ministro do Turismo, Yariv Levin (Likud), disse que o comentário de Herzog foi populista, lembrando que Israel foi um dos primeiros a prestar ajuda humanitária aos sírios feridos que chegaram a Majdal Shams. Por fim, recomendou à Autoridade Palestina que os recebesse, esquecendo-se de que esta precisa da autorização do governo israelense para isso.
De forma menos agressiva, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu também discordou de Herzog, quando, pressionado por parte da opinião pública, afirmou que Israel é um país muito pequeno para receber estes refugiados. Curioso que Issawi Frej (Meretz) disse justamente o contrário, citando quilômetros de terras desabitadas no norte do país, prontas para receber refugiados sírios, vítimas de um genocídio de homens, mulheres e crianças. Um argumento pragmático contra um argumento moral.
Tentando ser pragmático em meio à polêmica, o líder do partido Yesh Atid, Yair Lapid, afirmou que Israel não está pronto para abrir um precedente para a volta dos refugiados palestinos, e por isso, deve recusar-se a receber refugiados sírios. Outro que tentou sintetizar o dilema entre moral e pragmatismo foi o parlamentar Bezalel Smotrich (A Casa Judaica), que afirmou que seu estômago é a favor da permissão de entrada dos refugiados, mas sua razão vai em sentido contrário. Diz que seu instinto humano o leva a desejar esta ação, mas que Israel não tem nem condições nacionais (referência aos árabes antissionistas que poderiam entrar no país) nem demográficas (referindo-se ao possível aumento da população árabe muçulmana no país), nem econômica para aceitá-los. Ele mesmo explicou o dilema.
Este dilema é o que realmente motiva a decisão dos parlamentares israelenses. Uns seguem seu instinto emocional, outros o pragmatismo. Israel, de fato, é um país pequeno, um pouco maior que o Líbano, que recebeu mais de um milhão de refugiados sírios (quase 30% de sua população). Sua economia é frágil, mas não mais do que a do Uruguai, que abriu as portas para estes mesmos refugiados. Israel pode esperar que os países árabes abram fronteiras para estes sírios, alegando ser deles a maior responsabilidade por serem povos irmãos, tal qual fizeram alguns países da América Latina com os judeus durante o Holocausto, quando atribuíam responsabilidade de salvá-los a países da Europa.
Todas as desculpas pragmáticas serão suficientes para justificar uma decisão política, mas isto não as torna moralmente corretas. O sentimento de humanidade deve prevalecer, sobretudo quando os judeus são o exemplo do que pode acontecer a um povo quando seu genocídio é ignorado. Ao ancorar-se nas sábias palavras do Talmud, encontra-se a resposta ao dilema moral: “Quem salva uma vida salva o mundo inteiro”. Todos sabemos que nenhum país pequeno pode receber todos os refugiados sírios, assim como temos a certeza de que fechar as portas é um ato lastimável, comparável ao que muitos países fizeram com os judeus há 70 anos, na Segunda Guerra Mundial. Israel deveria receber refugiados sírios, ainda que uma quantidade limitada. Este é o certo que desestabilizaria um pouco o país. Mas vale a pena. É melhor errar tentando fazer o bem do que morrer sem saber o que é tentar fazer o certo.
Fontes:
------------------------------------
Foto de capa retirada de http://www.kremlin.ru/events/president/news/57488/photos
Comments