Originalmente publicado em 10/01/2013, no Conexão Israel
Bibi diz que não negocia com o Hamas por ser um grupo terrorista. Abbas não negocia com Israel sem que o governo deixe de construir assentamentos. Bibi diz que não negocia com condições prévias. O Hamas não reconhece o Estado de Israel. Israel não reconhece o Hamas como governo. Hamas e Fatah entraram em guerra pelo poder em 2007. Ninguém parece se entender, tudo é muito confuso e complexo, e a única certeza é que a paz está distante. Bem distante. Como a situação chegou ao que é hoje? Vamos em frente, sem deixar de olhar para trás.
Sobre o que, exatamente, falaríamos com o Hamas?” Este é o título da coluna do jornalista e ex-embaixador israelense na Mauritânia, Boaz Bismut, no tabloide direitista Israel HaYom. O colunista defende que não se pode ignorar os pedidos por um diálogo com o Hamas, mas questiona se há o que dialogar com o grupo terrorista, que sequer reconhece o Estado de Israel. Ele pergunta: o que Hamas negociaria? Ele cita que líderes do Hamas, recentemente, afirmaram que “não desejam matar judeus, só os sionistas que ocupam a sua terra sagrada”. Como Israel negociaria com um grupo que não cogita a possibilidade de ceder nada entre o Rio Jordão e o Mar Mediterrâneo? Qual seria o sentido do diálogo se a outra parte não aceita abrir mão de nada? Proponho uma análise sobre as relações de Israel com o Hamas, e a busca pelas razões do entrave no processo de paz com a Fatah. Caminhos serão propostos por mim, humildemente, e cada um concorda se quiser. A narrativa também é a minha visão dos fatos. Aqui, no momento, não estou preocupado com a falácia da imparcialidade.
O Hamas existe desde 1987, desde então não reconhece o Estado de Israel e tampouco é reconhecido pelo mesmo. O Fatah existe desde 1964. Em 1993, seu ex-líder, Yasser Arafat, assinou os Acordos de Oslo com o ex-primeiro-ministro Itzhak Rabin, renunciando ao terror e reconhecendo o Estado de Israel. Recebeu em troca a autonomia das áreas A e B da Cisjordânia (dividida em A, B e C) e a possibilidade de formar um governo reconhecido por Israel, a partir da criação da Autoridade Palestina (AP). Arafat, que nunca foi “engolido” pela direita israelense, faleceu em 2004, ainda sem lograr a criação do Estado palestino. Mahmoud Abbas (Abu Mazen), intelectual acadêmico, um dos interlocutores e planejadores dos Acordos de Oslo, e sensivelmente mais moderado, foi seu sucessor após as eleições do executivo da ANP em 2005. Neste ano, no entanto, foi também quando Ariel Sharon efetivou o Plano de Desconexão (retirada unilateral da Faixa de Gaza). Apesar dos pedidos de Abbas, Sharon decidiu não envolver a AP no seu projeto, retirando as tropas e todos os cerca de 7,5 mil colonos judeus de Gaza. O Hamas vendeu a Desconexão como uma vitória militar, e levou as eleições para o legislativo em 2006, dificultando qualquer negociação entre Israel e os palestinos naquele momento. Quando o Hamas venceu as eleições de 2006, muitos analistas defendiam que a situação finalmente mudaria, pois, sendo governo, o grupo não poderia mais sustentar posições tão radicais. Um acontecimento, no entanto, não deu tempo hábil para o Hamas ter alguma experiência em um governo reconhecido internacionalmente.
Em 2005 e 2006 houve, respectivamente, eleições para o executivo e para o legislativo da ANP. Venceram, nesta ordem, Abbas (Fatah) e o Hamas. Ismail Haniyeh, líder do grupo fundamentalista, tornou-se primeiro-ministro. As diferenças de visão e estratégia dos dois grupos resultaram em um conflito (Guerra Fatah-Hamas), com mais de 800 mortos e 1000 feridos. Abbas demitiu Haniyeh, dissolveu o parlamento e convocou novas eleições, não aceitas pelo Hamas. O Fatah foi expulso de Gaza e o Hamas, por sua vez, da Cisjordânia. Até hoje o Hamas não reconhece o governo do Fatah, e nem o Fatah nem Israel reconhecem a autonomia do Hamas em Gaza.
O Hamas, isolado em Gaza pelo bloqueio israelense, e com poucos aliados no momento, reforçou seu fundamentalismo. Sem conseguir dar sequência aos atentados com homens-bomba, o grupo se reinventou e passou a atirar foguetes contra Israel. E Israel, tratando o Hamas somente como um inimigo militar, passou a negociar com a Fatah como se Gaza não existisse. O Hamas foi ignorado por Ehud Olmert e por Abbas nas negociações de Anápolis.
O Hamas tentou mostrar que existia em diversos momentos: no sequestro de Gilad Shalit, em 2006; durante a Operação Chumbo Fundido (2008-09); durante a última Operação Pilar Defensivo, em 2012. E por diversas vezes disparou foguetes contra Israel, ameaçou o Estado judeu, e etc. Israel prefere ignorá-los. E é aí que entra o nosso excelentíssimo primeiro-ministro.
Binyamin (Bibi) Netanyahu não ignora o Hamas. Desde a sua campanha para eleger-se primeiro-ministro até o fim do seu mandato (que deverá se prolongar), ele só fala sobre Hamas e Irã. O grupo sunita e o Estado islâmico são elementos tão presentes na retórica de Netanyahu, que às vezes é possível confundi-lo com um líder militar. Quem Bibi ignora é o Fatah. Ignora quando segue construindo assentamentos na Cisjordânia. Ignora quando diz que Jerusalém Oriental é como Tel-Aviv, e nunca será devolvida. Ignora, sobretudo, quando exclui a Fatah do mapa das negociações que contam até mesmo com o Hamas. Os membros do Likud não confiavam em Arafat, não só pelo seu passado terrorista, mas pelo seu presente corrupto e negligente em relação ao terrorismo. Até hoje a Fatah conta com um grupo armado, mas este se encontra efetivamente inativo. Durante o período de Arafat, não eram tão raros os atentados terroristas em Israel vindos da Cisjordânia. Tudo o que Israel exigiu de Abbas para que se negocie era acalmar os ânimos dos palestinos. O presidente da AP o faz de forma eficiente: há sete anos o clima é de tranquilidade entre os dois lados, salvo raras exceções. E tudo o que Abbas pede em troca das negociações é o congelamento da expansão dos assentamentos na Cisjordânia. Mas Bibi o ignora solenemente, diz que não negocia com condições prévias e o joga para fora do mapa político.
Bibi não só é indiferente ao Fatah, como sustenta a moral do Hamas. Abbas, que durante dois anos e meio de mandato sentou-se com Bibi por duas míseras vezes, resolveu ir à ONU em 2011. Mesmo sabendo que seria derrotado pelo veto americano, fez questão de tentar junto às Nações Unidas a declaração do Estado palestino nas fronteiras de 1967. O que fez Bibi durante o processo? Terminou as negociações com o Hamas (quem disse que ele não negocia com o grupo?), trocando o soldado Gilad Shalit por mais de mil prisioneiros. Resultado? Comoção em Israel, festa do Hamas em Gaza e, novamente, Abbas isolado. Querem outro exemplo? Agora mesmo, há pouco menos de dois meses, quando foi acordado o cessar-fogo com o Hamas após a Operação Pilar Defensivo, Abbas tentou participar das negociações, mas Bibi o ignorou novamente. O Hamas saiu fortalecido de novo. E os jornais israelenses nem se recordavam que existiam palestinos na Cisjordânia.
Abbas foi à ONU outra vez, mas, agora, de forma mais inteligente: foi exigir o reconhecimento da Palestina como Estado observador. Para isso, ele não dependia do Conselho de Segurança, e ganhou de lavada. Bibi ameaçou não repassar o orçamento da AP e cancelar os Acordos de Oslo. Abbas, finalmente, percebeu que tudo o que Oslo lhe deu durante o governo Bibi foram pepinos para administrar, e disse que Netanyahu poderia cancelar os acordos à vontade. Abbas se cansou de Bibi. Só nos sobra o Hamas.
Hoje temos um parceiro para negociações do lado palestino. Negociar trocas de território com o Hamas é um erro, pois assim se deslegitima o nosso aliado Fatah. Bibi não quer paz, pois não deseja trocar territórios. Por isso fortalece o Hamas. Negociar ou não com o Hamas é um tema recorrente, mas o governo já deu a sua resposta: eles preferem o Hamas ao Fatah. Enquanto o governo Olmert, também de forma equivocada, ignorava o Hamas e até chegou a dar ajuda financeira ao Fatah durante a guerra civil palestina, o governo Netanyahu mostra preferir o oposto. Hoje Hanyieh está em primeiro lugar nas pesquisas para a sucessão de Abbas como presidente da AP. O candidato à reeleição foi ultrapassado após a última operação israelense em Gaza.
E o Hamas? Eles acreditam realmente que conseguirão acabar com o Estado de Israel? A minha opinião é que não. Ninguém é bobo daquele lado para acreditar que uma guerrilha mixuruca pode vencer o exército mais forte do Oriente Médio. Mas o último conflito, apesar de pela primeira vez posicionar a União Europeia ao lado de Israel, também deu força política ao Hamas. Líderes de países como o Egito, a Turquia, o Qatar e outros visitaram Gaza durante a operação e manifestaram solidariedade ao grupo religioso. O Hamas negociou o cessar-fogo com Israel, sem a participação da Fatah. Não se sabe exatamente o que foi acordado, mas certamente algo de proveitoso o Hamas conseguiu. O grupo apresenta indícios de que deseja participar das decisões políticas na região e ser reconhecido como governo também por Israel. Se deixarão de ser terroristas, se abandonarão suas aspirações de ter todo o território entre o Jordão e o mar, isto eu não posso dizer. Mas o diálogo com o Hamas é sim possível. Se nos lembrarmos que fizemos paz com o Egito, disparado nosso maior inimigo na época, e colocamos Rabin e Arafat (um ex-terrorista) na mesma mesa, pode-se dizer que o diálogo com o Hamas é possível. Evidentemente que cada caso se deu em um contexto distinto, mas afirmar a impossibilidade é uma ofensa à história. O Fatah só reconheceu o Estado de Israel após 29 anos de uma mistura sangrenta entre Intifada, Guerra do Golfo, operações e atentados. Se nós realmente preferimos o Hamas à Fatah, então que escolhamos logo o nosso partner. A única pergunta é: o quão sangrento pode ser o processo que levará o Hamas a reconhecer o Estado de Israel. Eu prefiro o Fatah e a paz. E que seja o mais cedo possível.
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Foto de capa: L to R Israeli Prime Minister Benjamin Netanyahu Secretary of State Hilary Clinton Palestinian President Abu Mazen [Abu Abass] Sharm El Sheich 14/9/2010Photo Moshe Milner GPO
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