Originalmente publicado em 09/05/2014, no Conexão Israel
Antissemitismo é (ou pelo menos deveria ser) crime, pois é semelhante ao racismo: é condicionar as atitudes de todo um grupo (social, religioso, não importa) por uma característica sua pré-existente: ser judeu. Judeu não é raça, todos sabemos. Eu, pessoalmente, sou cético em relação à existência de raças na humanidade. O termo semita é oriundo da origem dos idiomas falados no Oriente Médio, que serviu como base para línguas como o hebraico e o árabe. O termo antissemita, no entanto, é associado diretamente aos judeus. Antissemitismo é ser anti-judeu, e as múltiplas formas de exercê-lo já variaram desde negar cidadania aos judeus até o genocídio do povo.
Antissionismo não é crime em nenhum lugar do mundo, nem em Israel. O sionismo é a ideologia que tem como objetivo legitimar as aspirações do povo judeu como nação: autoemancipar-se nacionalmente através da criação e desenvolvimento de um Estado próprio. O antissionismo nega aos judeus o direito de considerar-se uma nação. Na prática, ser antissionista é ser contra a existência de Israel.
Há pessoas que consideram o antissionismo como uma nova forma de antissemitismo. Há pessoas que não vêem qualquer relação entre ambos. Eu considero que são coisas diferentes, mas que podem ter relações, sim. E acredito que na maioria das vezes, têm.
Há antissionistas judeus. Há antissionistas judeus em Israel. Há antissionistas judeus religiosos em Israel. Eu não consigo visualizar que tantos judeus ultraortodoxos possam ser antissemitas. Este fato por si só já desfaz a ideia de que antissionismo é necessariamente antissemitismo. Há grupos de judeus laicos e humanistas que também desprezam o sionismo. Isto significa que há judeus que não se vêem como um povo, ou como uma nação. Há, inclusive, ideologias nascidas no seio do judaísmo que têm como parte de sua essência o caráter antissionista, como o bundismo e os neturei karta. Podemos afirmar, então, que o antissionismo não é por definição uma forma de expressão antissemita.
Não judeus também têm o direito de ser contrários ao sionismo, mas ao mesmo tempo não serem antissemitas. Obviamente. Eu não diferencio a origem da pessoa como elemento possibilitador ou proibitivo para nada. O direito de ser a favor ou contrário a uma causa é legítimo. Mas a forma de atuação pode sim ser avaliada moralmente.
Os judeus são um povo. Porque assim se vêem. Este é o princípio da autodeterminação dos povos. Da mesma forma que os palestinos são um povo, e reivindicam justamente o seu Estado nacional, os judeus também têm o direito de fazê-lo. Negar aos judeus o direito de autodeterminar-se nacionalmente não é antissemitismo. Antissemitismo é negar somente aos judeus este direito. Israel é um dos raros países que tem seu direito à existência questionado todos os dias. Nunca na minha vida vi um movimento anti-Portugal, anti-Síria ou anti-Canadá. No entanto, há movimentos antissionistas pleiteando participação no parlamento europeu. Quando o antissionismo passa a ser uma ideologia principal, eu desconfio.
Outro fator que me faz associar antissionismo a antissemitismo são as comparações entre a política de ocupação israelense nos territórios conquistados em 1967, e a Shoa (Holocausto). É preciso ser muito ignorante ou ter muita má fé para associar os casos. Vejam bem: não estou de forma alguma justificando a ocupação israelense (na minha opinião imoral), as retaliações do exército (algumas vezes criminosas) e muito menos a colonização da Cisjordânia (imoral e criminosa). Da mesma forma que acredito que a Shoa jamais deve ser usada como justificativa política para qualquer ação israelense nos territórios, acho absurda qualquer comparação dela com a ocupação. A Shoa foi um genocídio planejado, sem precedentes na história. Milhões de seres humanos foram assassinados de diversas formas, à princípio por fuzilamento e fossas comuns, e, quando a crueldade começava a tirar o sono dos soldados (também seres humanos) que a cometiam, passou-se a usar câmaras de gás para que ninguém visse o que ocorria, para que os soldados da SS não tivessem pesadelos por disparar na cabeça de recém-nascidos, ou que não tivessem que embebedar-se à noite para realizar seu trabalho no dia seguinte. E os que por sorte sobreviveram a essa matança desenfreada e proposital, passaram anos de suas vidas como escravos. Não há nem nunca houve nos territórios palestinos um genocídio. Não há escravidão. Não há sequer tentativa de aproximar o que acontece lá com o que ocorreu na Europa durante a 2ª Guerra Mundial, muito menos a intenção. Há crimes. Há injustiça. Há humilhação. O que há, de fato, é horrível. Mas de horrível até Shoa há muita água para rolar. Então por que a comparação? Porque todos sabem como a Shoa é traumatizante para a história do povo judeu. Afirmar que judeus produzem algo semelhante ao Holocausto é um claro ataque, totalmente imoral por ser baseado em uma mentira. Inventar, ocultar e manipular para atacar a Israel, utilizando como base um tema tão sensível ao povo judeu, isso é antissemitismo.
Outra forma de antissionismo que me causa grande desconfiança é a supervalorização dos erros de Israel em detrimento aos de outros países. Atacar Israel consequentemente e simplesmente "esquecer" o que acontece em outros lados é no mínimo estranho. De modo algum está proibido atacar Israel. Eu peço, no entanto, coerência. O regime de Assad na Síria já assassinou mais de 80 mil pessoas, desde 2011, um número superior ao de todos os palestinos mortos desde 1948 em operações militares e guerras contra Israel. O número de sudaneses mortos desde 1983 já ultrapassou os dois milhões. Nunca na minha vida assisti a uma passeata contra estes massacres. Nunca vi ninguém queimando bandeiras sírias ou sudanesas depois de um ataque. Nunca vi um país sendo chamado de nazi-fascista dos anos 1990 para cá que não seja Israel. A pergunta, então, é: por que os crimes cometidos por Israel são suficientes para que sua bandeira seja desenhada com uma suástica, ou queimada em manifestações, enquanto não se vê gritos pedindo o fim do Estado sírio, ou o uso da terminologia "nazi-fascista" para referir-se a Estados (ou até mesmo a governos) em conflito com grande contingente de mortos? Eu aposto que o exército israelense matou menos da metade dos civis que a Polícia Militar do Rio de Janeiro desde 1948, e nem por isso há manifestações contra a existência do Brasil ou do estado do Rio de Janeiro. Há, sim, contra a violência policial. Contra os governos que cometem crimes, não contra todo o Estado de forma geral. Mas, neste caso, os crimes do governo são suficientes para que todo o país seja atacado. Neste caso, dificilmente alguém me convencerá que este antissionismo não é antissemita.
Se você acredita que Israel é o único Estado que tem vida própria, cuja essência se sobrepõe aos governos e o transforma em imoral por condição, ou que os judeus são o único povo no mundo que não tem o direito de autodeterminar-se nacionalmente, recomendo que você reveja suas posições. Ser antissionista não é crime e pode até ser moralmente legítimo. Para isso, basta não ser antissemita, e não tratar Israel de forma distinta de como trata todos os outros países do mundo. Parece simples. E é.
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Foto de capa: Original photo credit: www.montecruzfoto.org
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