Originalmente publicado em 20/05/2021, no Conexão Israel
O conflito (ou os conflitos) que se dão no momento em Israel e na Faixa de Gaza pode parecer um filme repetido, mas traz tristes novidades às quais devemos dar toda a atenção possível. Quatro fatores, para ser mais exato, que jamais poderiam ser dissociados, explicam essa escalada de violência. Talvez o leitor se pergunte por que há tanto tempo não escutava falar sobre o conflito entre Israel e os palestinos. Este questionamento se responde em uma palavra: pandemia. O mundo sofre uma pandemia que já alcança a casa dos milhões de mortos, que causou a maior crise econômica dos últimos 80 anos, e não há muito espaço para confrontos regionais. Não há atenção por parte da comunidade internacional, não há dinheiro, não há lugar nos hospitais. Ou não havia. Aqui em Israel, salvo o controle excessivo sobre chegada de pessoas do exterior, que podem trazer variantes cujo efeito da vacina é desconhecido, o Coronavirus faz parte do passado. E quando o Coronavirus fica para trás, há espaço para que velhos temas reapareçam, aquecidos por novidades que saíram do casulo, que estavam sendo trabalhadas e apareceram na nossa frente sem que nos déssemos conta de que a situação tinha tais dimensões.
As quatro razões
O ambiente pós-eleitoral israelense nos trouxe de volta o conflito com os palestinos pelas mãos dos extremistas da direita judaica. Tem gente com posições assustadoramente racistas e violentas que está brigando para receber pastas ministeriais no governo de Benjamin Netanyahu. Incitar ao ódio, promover discórdia, escrever projetos de leis que restrinjam o poder Judiciário, que regularizem ações ilegais na Cisjordânia e que deem aos judeus direitos especiais em relação aos árabes passaram a ser atividades comuns de parlamentares. Foram legitimados pelo próprio Netanyahu, que trabalhou pela junção de dois partidos radicais (o partido Sionismo Religioso), para que estes ultrapassassem a cláusula de barreira, dando a um destes partidos, inclusive, um lugar na lista do Likud, caso o número de cadeiras desta lista fosse escasso. Resultado: seis cadeiras que se tornaram sete, um poder gigantesco na Knesset de hoje. O ambiente pós-eleitoral é um prato feito para os radicais da extrema direita judaica. Nunca foram tão legitimados, nunca tiveram tanto poder nem tanto lugar na mídia.
O ambiente pré-eleitoral na Palestina é outro fator de importância singular. A Palestina não realiza eleições legislativas há 15 anos (!), nas quais o Hamas venceu e houve uma guerra civil um ano depois, que separou de vez os palestinos numa Cisjordânia governada pelo laico e moderado Fatah (que reconhece Israel e não realiza mais atentados terroristas), de uma Faixa de Gaza comandada pelo religioso e radical Hamas (que não reconhece Israel e já entrou em três guerras com o país desde 2008). Abu Mazen (Mahmmoud Abbas), presidente da Autoridade Palestina (AP), convocou eleições legislativas para a metade do ano, e as cancelou sob o motivo da recusa de Israel de permitir que as mesmas fossem realizadas também em Jerusalém oriental. Israel alega exercer soberania sobre Jerusalém inteira, e não admite que os palestinos façam eleições na sua capital. Por outro lado, os palestinos não admitem não realizar o pleito na cidade que eles almejam que seja a sua capital quando fundarem seu Estado nacional. Israel tampouco permitiria que ativistas do Hamas e de outros grupos que considera terroristas fizessem campanha em Jerusalém, e isso foi o pretexto perfeito para que Abu Mazen, cancelasse as eleições. Por que pretexto? Porque Abu Mazen percebeu que dificilmente venceria este pleito, correndo o perigo de legitimar o poder do Hamas pela segunda vez. Desta vez, no entanto, provavelmente, o dano seria irreversível. Havia outros partidos na disputa, o jornalista Diogo Bercito explicou de forma muito didática no podcast “E eu com isso?”, do Instituto Brasil Israel (escute aqui: https://open.spotify.com/episode/6pFfx2WzxtglvODmnUxWX4). O cancelamento das eleições foi um banho de água fria a todos os partidos que desejavam substituir o Fatah no poder, sobretudo ao Hamas.
E aí entra o isqueiro que ascendeu o fio de pólvora: Sheik Jarrah. Me refiro a um bairro árabe de Jerusalém oriental (chamado por algumas correntes da direita judaica de Shimon HaTzadik) que está no centro de uma polêmica judicial. Quatro famílias judias alegam que são proprietárias de terrenos onde vivem famílias árabes, tais terrenos teriam sido adquiridos antes da criação do Estado de Israel. Pela lógica capitalista do direito à propriedade, questão fácil de ser resolvida. Mas em Jerusalém isso é muito mais complexo. Não faltam palestinos, refugiados ou descendentes, com escrituras e até as chaves de suas casas (ou de seus antepassados) em cidades israelenses, exigindo o retorno a seus lares desde seu exílio na Guerra de 1948, e negado por Israel. Mas as famílias judias tiveram ganho de causa na luta por essas propriedades. Jerusalém foi anexada por Israel no início dos anos 1980 (ainda que a comunidade internacional não reconheça essa anexação), e supostamente o que vale em Jerusalém é a lei israelense. Os palestinos, entretanto, não reconhecem essa anexação, sobretudo a Jerusalém oriental, e se iniciou lá uma onda de protestos, fortemente reprimidos pela Polícia. Em uma dessas manifestações, o parlamentar Ofer Kassif, judeu, mas pertencente à coalizão de partidos de eleitorado árabe (Lista Unificada), foi agredido com violência desproporcional pela Polícia. A Suprema Corte mandou congelar a remoção dos palestinos para avaliar o caso, mas a bagunça já tinha começado.
E aí entra o contexto: Ramadã. O mês sagrado dos muçulmanos é, geralmente, um mês tenso em Israel. De noite, durante o Iftar, quando os muçulmanos já podem se alimentar (em Ramadã é proibida a ingestão de alimentos à luz do dia), muitas vezes há protestos, às vezes violentos. Sheik Jarrah foi um gatilho para estes protestos esse ano, que se estenderam para o Portão de Damasco, o local historicamente de maior simbolismo político para o nacionalismo palestino. Além de ser a principal porta de entrada para a Mesquita de Al-Aqsa, a terceira mais sagrada do mundo para os muçulmanos, e um local muito frequentado nas noites de Ramadã, a praça em frente ao Portão de Damasco foi palco das manifestações mais simbólicas do movimento nacional palestino, além de ser um local onde, em momentos de tensão, costumeiramente são realizados atentados. É um local muito importante para todas as correntes do nacionalismo palestino. E o que fez a Polícia, quando viu que as manifestações cresciam para este lado? O pior que podia fazer: fecharam o Portão de Damasco. Essa avaliação não é minha, é da própria Polícia, que teve que voltar atrás porque os tumultos se multiplicaram após o fechamento. Para o nosso grande azar, o calendário muçulmano é lunar, têm os meses móveis, e este ano a última noite de Ramadã, a festividade de Eid al-Fitr, caiu exatamente no mesmo dia de Yom Yerushalaim, o “Dia de Jerusalém”, que comemora a reunificação da cidade na Guerra dos Seis Dias (1967), e tem como ritual uma marcha de judeus (principalmente sionistas ortodoxos) com bandeiras de Israel, que passa pelo Portão de Damasco, cruza o bairro árabe da cidade velha de Jerusalém, até chegar ao Muro das Lamentações. Eu pude certa vez presenciar esse evento no bairro muçulmano, quando vi um grupo de centenas de adolescentes marchando e batendo nas portas das lojas do bairro árabe (o comércio obviamente estava fechado) cantando “Esta terra é nossa”. Mas não acabou. Menos de uma semana após o fim do Ramadã é o Dia da Nakba (catástrofe) como os palestinos se referem à criação do Estado de Israel. Precisa dizer que este também é um dia tumultuado por aqui?
A disputa política
Voltamos ao primeiro ponto, que é o cenário pós-eleitoral israelense, e faremos a conclusão dos fatos: as tensões estavam à flor da pele, e o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu não havia conseguido formar o governo nos 28 dias que lhes foram dados. O presidente Reuven Rivlin deu ao centrista Yair Lapid (do partido Yesh Atid) o mandato, ou seja, 28 dias para formar o governo e substituir Netanyahu após 12 anos ininterruptos no poder. Netanyahu falhou ao não conseguir convencer o partido dos radicais religiosos judeus (Sionismo Religioso) a aceitar compor uma coalizão com o partido que representa a divisão do sul do movimento islâmico (Ra’am), por considerá-los pró-Palestina e colaboradores do terrorismo. A situação já era inédita por si só, uma vez que jamais na história de Israel um partido árabe não-sionista havia participado de uma coalizão governista. Impressiona mais ainda que este tabu se rompesse justamente com o único partido árabe autodeclarado religioso (da mesma família política do Hamas, por exemplo), formando uma coalizão somente por partidos de direita. A legitimidade que Netanyahu deu a uma coalizão formada por um partido árabe foi um tiro que saiu pela culatra: agora era Yair Lapid quem tentava formar o governo com o Ra’am, além de partidos de todos os espectros políticos (veja a tabela abaixo). E as negociações já avançavam antes mesmo dos últimos dias do mandato de Netanyahu.
Não era tarefa simples formar um governo com um partido árabe islâmico, dois partidos de esquerda, três partidos de direita e dois de centro, que juntos chegariam a 62 cadeiras. Lapid teve de abrir mão de ser primeiro-ministro mesmo tendo a maior bancada, ao menos nos primeiros dois anos do mandato. Naftali Bennett, do direitista e nem um pouco moderado Yamina, cobrava um preço alto: exigia ministérios-chave e os dois primeiros anos chefiando o governo. Bennett tinha dificuldade de manter seu próprio partido consigo, o deputado Amichai Shikli anunciou que não votaria a favor deste governo. Já era uma minoria simples, apenas 61 deputados, qualquer desistência significaria uma derrota. Lapid ainda teria que convencer os trabalhistas e o Meretz a aceitar as exigências de Bennett, além de agradar minimamente outros caciques de outros partidos. Difícil missão.
Quando tudo se desenrolava e o acordo parecia selado, o parlamentar Miki Zohar, líder interino do governo Netanyahu, decidiu levar a votação uma série de projetos de lei que eram bandeiras de Bennett no seu período mais radical. Entre tais projetos, a regularização de assentamentos ilegais na Cisjordânia. Leis que o próprio Likud não quis levar a votação anteriormente por entenderem que, caso aprovados, colocariam Israel em uma saia justa frente a comunidade internacional, além de representarem combustível para tensões com os palestinos. Segundo o próprio Zohar, o objetivo era constranger os parlamentares da direita que negociavam com a esquerda. De uma hora a outra, membros do Likud passaram a negar que alguma vez tivessem negociado com Mansour Abbas, líder do Ra’am, e todas as metralhadoras verbais foram dirigidas a Bennett: desde traidor da direita até esquerdista fraco, passando por coveiro do sionismo religioso. O objetivo era claro: implodir as negociações a todo custo, trazendo novamente a possibilidade de Netanyahu formar o governo, ou, no mínimo, convocando novas eleições.
Mas não ficou só nisso: o líder do partido Sionismo Religioso, Betzalel Smotrich, e o mais fanático membro da extrema direita israelense, o agora deputado Itamar Ben-Gvir, passaram a tumultuar a situação o máximo possível. Smotrich, além de atacar seu ex-companheiro de partido Bennett incessantemente, bradou por todos os cantos que a marcha das bandeiras de Yom Yerushalaim jamais poderia deixar de acontecer em Israel. Ben-Gvir levou seu gabinete para Sheik Jarrah para despachar de lá, sob o pretexto de, desta maneira, garantir a proteção dos manifestantes judeus, pois a Polícia deveria protegê-lo como um parlamentar. Ben-Gvir acusava a Polícia de não proteger os manifestantes judeus de ataques árabes, e encorajou os mais radicais a protestarem em Sheik Jarrah. Estes dois parlamentares, junto a outros membros de seu partido e apoiadores, conseguiram, no meio desta situação de tensão, que judeus pudessem subir à Esplanada das Mesquitas (Monte do Templo) para rezar, o que é considerado uma provocação pelos muçulmanos já em tempos de paz.
Os confrontos que aconteciam concentrados em Sheik Jarrah e Portão de Damasco se estenderam para a Esplanada das Mesquitas, com a violência habitual. Foi sugerido que a marcha das bandeiras fosse cancelada frente a esta tensão, ou que ao menos tivesse seu trajeto alterado, mas Netanyahu sofria forte pressão de setores mais à direita e o preço eleitoral que teria que pagar seria alto demais. Somente no próprio Yom Yerushalaim a marcha teve seu trajeto alterado, transcorreu enquanto a Polícia enfrentava barricadas e protestos na Esplanada das Mesquitas. O Hamas, então, vendo que Abu Mazen não tomava uma iniciativa, decidiu aproveitar-se do momento e roubar a cena: autodeclarando-se os defensores da Mesquita de Al-Aqsa, lançaram foguetes em direção a Jerusalém, interrompendo, inclusive, uma sessão na Knesset. Para que o leitor tenha noção da gravidade da situação, é fundamental destacar que o Hamas já demonstrou ter foguetes com alcance a Jerusalém desde 2012, mas, até hoje, menos de 20 foram disparados contra a cidade, contra centenas lançados a Tel-Aviv. Isso se deve a uma série de fatores, como a grande população árabe da cidade, a proximidade com a Cisjordânia e a possibilidade de atingir a Mesquita de Al-Aqsa ou o Domo da Rocha, entre outros. Desta vez o simbolismo valia o preço, mesmo sabendo que as consequências seriam duras.
As Forças de Defesa de Israel (FDI) bombardearam a Faixa de Gaza, como já era esperado, e foguetes foram disparados contra a região sul de Israel. Iniciou-se uma escalada de violência em Gaza e arredores, que já era transformada em operação e ganhava nome (dando indícios de que seria longa): Operação Guardiões das Muralhas. Demorou-se dois dias até que os foguetes atingiram Tel-Aviv, dando a ideia de que, talvez, o Hamas não estivesse interessado em uma escalada de grandes proporções. Vale lembrar que, há cerca de três semanas, foram disparados pouco mais de 20 foguetes contra Israel, que não revidou e as coisas ficaram por isso mesmo. Mas, se o Hamas não estava interessado em uma guerra longa, talvez Israel sim estivesse. Ver Jerusalém bombardeada no dia de Yom Yerushalaim e não responder à altura (leia-se: golpear o Hamas com força) é impensável para qualquer governo que já tenha existido em Israel. Para um primeiro-ministro em vias de disputar eleições, cuja sua principal base de apoio externa ao seu partido é a extrema-direita, menos ainda.
A grande questão é que a violência se prolongou pelas ruas de Israel, passando primeiramente de Jerusalém para Lod, uma das seis cidades do país consideradas mistas (com população de ao menos 10% árabe – Lod, no caso, tem 63% de judeus e 37% de árabes). No caso específico de Lod, o prefeito Yair Revivo (Likud), é conhecido por atuar contra a comunidade árabe da cidade, e não à toa foi lá que começaram os distúrbios urbanos fora de Jerusalém. Cenas de gangues de árabes marchando com barras de ferro, pedaços de pau e morteiros, destruindo lojas, edifícios públicos e até sinagogas chocaram a população. Logo Lod, uma cidade sem histórico de violência nacionalista, ao menos nos últimos 20 anos, tomou de Jerusalém (que curiosamente se acalmou) o cenário de guerra, que de lá se espalhou por outras localidades: nas cidades mistas Ramle e Acre (Ako), até nas tolerantes Haifa e Jaffa (distrito de Tel-Aviv), linchamentos, apedrejamentos e confrontos com a Polícia tornaram-se notícias diárias. Judeus que se perderam e por azar entraram em cidades árabes, como Uhm Al-Fahm, também tiveram seu carro destruído e temeram pelas suas vidas. A extrema-direita judaica decidiu atuar, e linchamentos de cidadãos árabes foram vistos em Bat Yam, Jaffa, Beer-Sheva e Tibérias. Um garçom árabe em Jerusalém foi esfaqueado quando jogava fora os sacos de lixo do estabelecimento. Como se não fossem suficientes os mortos e feridos pelo confronto com o Hamas, os hospitais passaram a encher-se de vítimas de ataques de gangues, árabes e judias, nas ruas do país. Já temos ao menos dois mortos em Lod, um judeu (apedrejado) e um árabe (vítima de um disparo). Árabes estão deixando de ir trabalhar em cidades judaicas. Cidades árabes encontram-se às moscas, cercadas por policiais. Rotas eram desaconselhadas pela Polícia, que não conseguia controlar os distúrbios em diversas cidades, sobretudo em Lod, onde nem mesmo um toque de recolher evitou a violência.
O governo convocou mais de sete mil reservistas das forças armadas, a grande maioria deles soldados da Polícia de Fronteira (Magav), para auxiliar a Polícia a fazer seu trabalho. O ministro da Segurança Pública, Amir Ohana (Likud), desapareceu da mídia, era fortemente criticado por todos os lados. Sua situação já era crítica desde o desastre de Monte Meron quando, uma semana antes, durante as festividades de Lag Ba’Omer, a superlotação do local (autorizada pela Polícia) resultou nas mortes de mais de 40 pessoas. Ohana, que já enfrentava fortes críticas pela violência como a Polícia semanalmente tratava os manifestantes de oposição ao governo em frente à residência oficial do primeiro-ministro em Jerusalém, se mostrava totalmente incompetente para o cargo após estes acontecimentos, mas se recusa a pedir demissão, a assumir responsabilidade e parece ter bastante moral com seu chefe: Netanyahu não só não o critica em público, como o banca em seu cargo. Os reservistas ajudaram a acalmar a situação, mas não há indícios do fim da animosidade com as feridas abertas que esta situação deixou.
Operação Guardiões das Muralhas
As FDI até agora não deram nenhum sinal de que usarão as forças terrestres na guerra atual. Não foram convocados reservistas, não há uma grande quantidade de tropas preparadas para entrar na Faixa de Gaza e há um trauma pela grande quantidade de perdas de soldados da Operação Margem Protetora, de 2014. Os ataques são feitos quase que somente pela força aérea, com pouca participação da artilharia. Quando eu vos escrevo, são quase 227 palestinos mortos pelos bombardeios, contra 10 em Israel atingidos por foguetes ou destroços. A FDI já bombardeou mais de 600 pontos em Gaza, o Hamas e a Jihad Islâmica já lançaram mais de 2.000 foguetes contra Israel. Aqui eu não me proponho a descrever a guerra – não falta isso na imprensa –, mas sim a fazer uma análise sobre as suas particularidades em relação a outras a sua influência frente ao contexto político de Israel e Palestina.
A operação atual teve quatro mortos a menos (até esta quarta-feira 19/05) do que a Operação Pilar Defensivo (2012), mesmo com um dia a mais (até agora). A guerra de 2012 também se reduziu a ataques aéreos israelenses, e teve seu cessar-fogo no oitavo dia. É provável que, quando você estiver lendo este texto, já tenhamos chegado ao cessar-fogo. Tal qual em todas as guerras com o Hamas, Israel alega ter o direito de se defender, e culpa o Hamas pelas mortes de civis, uma vez que os membros do grupo não se diferenciam dos civis e se escondem e disparam de edifícios públicos e residenciais. Israel também alega avisar antes de realizar parte dos bombardeios, a fim de que a população civil deixe os edifícios e a força aérea possa destruir depósitos de armamentos ou a infraestrutura do Hamas.
A novidade em 2021 é que o Hamas passou a avisar quando vai bombardear Tel-Aviv e arredores (curiosamente o faz apenas com Tel-Aviv, bombardeios a outras partes do país não são previamente anunciados). Não sabemos a razão pela qual isso é feito, porém há algumas hipóteses: reproduzir o mesmo discurso de moralidade da FDI, por exemplo, ou colocar a população de Tel-Aviv sob tensão preexistente seriam duas delas. Eu acredito que este anúncio prévio tenha relação com outro fator: o Hamas não queria essa escalada, estão loucos para que ela termine, pois seu objetivo já foi alcançado. Na realidade, eu penso que o Hamas não desejava essa escalada desde o princípio. Por que eu penso assim? O grupo me deu alguns sinais disso, ou pelo menos assim eu os interpreto. A primeira razão é objetiva e não deixa dúvidas: o Hamas não se negou, segundo diversas fontes, a negociar o cessar-fogo desde o início das tensões. Só isso já justifica a minha opinião. Mas imaginemos que esta informação seja falsa, tentemos analisar os atos do Hamas durante o conflito. Primeiramente, eles tardaram dois dias de guerra até que bombardearam Tel-Aviv pela primeira vez. Tel-Aviv também não é bombardeada todos os dias, e, quando é, além do anúncio prévio, o Hamas aponta justificativas e as torna públicas, como, por exemplo, defender os civis mortos. Por mais que o argumento não cole (ao menos para mim), é um indício de que talvez eles realmente não queiram seguir com as agressões neste momento. Sabemos, ao menos por informações do governo e do FDI, que o estrago que a força aérea israelense fez na estrutura do Hamas é grande, e que em um contexto de pandemia e crise econômica mundial, pode demorar até que Gaza seja reconstruída e que o Hamas recupere seu poderio militar. Mas o principal fator que realmente me faz crer neste desejo por um cessar-fogo é o fato de que o objetivo do Hamas foi alcançado muito rapidamente, e o grupo, para sair-se vitorioso em uma escalada, precisa apresentar um discurso convincente de vencedor. E eles têm: enquanto o Fatah e outros grupos ficaram estáticos observando os acontecimentos em Sheik Jarrah, no Portão de Damasco e na Esplanada das Mesquitas, apenas o Hamas tomou a iniciativa e atacou. Saíram-se como os únicos defensores de Al-Aqsa e do povo palestino, os bravos guerreiros que bombardeiam Jerusalém no dia de Yom Yerushalaim. Como se isso não bastasse, a insurreição árabe (ou de parte da sociedade árabe-israelense) se encaixa no seu discurso de vitória, e lhes serve bastante: o Hamas se apresenta como quem despertou a revolta adormecida no peito dos palestinos com cidadania israelense, e os colocou no campo de batalha. Foram seus foguetes a Jerusalém, e nada mais, o que ascendeu essa faísca. E tudo isso justamente no momento em que um partido árabe-israelense estava por participar de uma coalizão governista, o que daria legitimidade ao Estado de Israel para parte bastante relevante da sociedade árabe-israelense. O Hamas conseguiu trazer de volta o espírito da Segunda Intifada, e, mesmo após terminar a guerra em Gaza, esse problema vai ter que ser encarado por Israel a longo prazo. Nada serve mais à estratégia do Hamas do que ver o despertar da fúria dos árabes israelenses, que tanto pareciam estar cada vez mais distantes da causa palestina, buscando somente viver em paz e melhorar suas condições dentro da sociedade israelense.
Política eficiente com resultados questionáveis
Para Netanyahu, será um pouco mais difícil construir um discurso de vitória convincente, uma vez que desde 2009 ele promete silêncio aos habitantes do sul de Israel e sua situação é cada vez pior. Bibi (apelido do primeiro-ministro), ainda que seja um político de direita e que se apresenta como “forte”, o “senhor segurança”, não é dos líderes israelenses que mais fizeram guerras com os palestinos (ou com os árabes em geral). Desta vez, no entanto, ele não dá sinais de desejar parar o confronto, pois sabe que um cessar-fogo, no momento que seja, virá acompanhado de ataques da direita e da esquerda. A direita perguntará “por que parou?”, e sempre haverá aqueles que pedirão para “ir até o fim”, extinguir o Hamas, ocupar Gaza novamente (algo que Netanyahu disse estar sendo considerado, hoje mesmo), e etc. Por outro lado, a esquerda perguntará “de que serviu esta guerra?”, pois todos sabemos que operações militares não são um caminho eficaz para destruir o Hamas. É verdade que enfraquece seu poder bélico, destrói sua infraestrutura, mas a um custo muito alto: centenas de vidas, que desgastam muito a imagem de Israel no cenário internacional. Bilhões (sim, você leu certo) de shekels em operações da força aérea e do Domo de Ferro. Tensões com outros países árabes, aliados e inimigos de Israel. E, agora, uma tensão interna com a população árabe-israelense, uma situação sobre a qual ninguém sabe o que esperar a curto/médio prazo. Algum objetivo deve ser alcançado, ao menos retoricamente. O discurso do governo deve ser de uma vitória contundente, e aí mora a possibilidade desta situação se prolongar por bastante tempo.
É verdade, por outro lado, que um dos objetivos políticos de Netanyahu foi alcançado: Lapid não conseguiu formar o governo, e nem deverá conseguir. Naftali Bennett, pressionado por sua base – especialmente pela ex-ministra da Justiça Ayelet Shaked – anunciou, em meio aos confrontos, o fim das negociações. A Lapid resta tentar convencer Bennett a mudar de ideia, ou convencer a Lista Unificada de apoiar seu governo. Mas com a situação como está, as duas opções parecem inviáveis. Bennett não teria o apoio de sua base, e os partidos árabes já perceberam que o timing de participar da coalizão com partidos sionistas já passou. Difícil dizer, no entanto, que Netanyahu buscava o caos, a guerra e a situação de agora. Acredito que nem ele nem seus aliados radicais previam esta situação (embora sobre alguns deles possamos dizer que a situação lhes é conveniente). Podemos afirmar que Netanyahu e seu bloco buscaram as tensões, sem imaginar o fim que suas ações teriam. O caos, afinal, não interessa a Netanyahu. As tensões são úteis quando administráveis, quando fogem de controle são perigosas. Netanyahu jogou com a dicotomia de forma excessiva. Mudava de postura como se não tivesse coluna vertebral. Uma busca simples no YouTube mostra a quantidade de vezes que seus discursos são contraditórios, variando de acordo com o contexto e com os seus interesses do momento. Em 2015, Netanyahu convocou os militantes da direita a votar porque o alto percentual de árabes indo às urnas colocava sob risco o Estado. Em 2021, Netanyahu se apresentou como líder que mais havia feito algo pela população árabe, e tentou viabilizar-se eleitoralmente perante esta população. Netanyahu negociou sem vergonha alguma com o mesmo partido que seus correligionários chamavam de apoiadores de terroristas e que pediam a sua exclusão das eleições. Tudo o que conseguiu foi provocar um rompimento na aliança dos partidos de eleitorado árabe, desacreditar estes partidos – e a democracia, de uma só vez – perante a sociedade árabe-israelense, e promover a figura de Mansour Abbas como um líder moderado, mas sem que isso lhe desse nenhum proveito. Criou tensões cuja conta chegaria.
Mansour Abbas, líder do Ra’am, ainda tentou resgatar algo das negociações tanto com Lapid quanto com Netanyahu: tentou apresentar-se como um sujeito moderado para ser aceito pelo <em>mainstream</em> da política israelense, criticando atentados contra colonos e a destruição de sinagogas, e foi rapidamente repreendido pelos líderes espirituais de seu partido. A carreira política do mais surpreendente e promissor líder árabe-israelense parece ter sido meteórica, chegou a um precoce fim. Abbas tentou dar um passo maior do que a sua perna, e ao invés de dar dois passos para a frente, deu três para trás e levou consigo toda a sociedade árabe-israelense.
Os árabes israelenses e palestinos: tensões à vista
O atual momento de conflito entre judeus e árabes em Israel demonstra o fracasso do Estado em lidar com esta parcela da população dentro da linha verde, e, mais ainda, o desastre que representa a política de administração do conflito com os palestinos. E uma coisa é indissociável da outra. Ainda que a situação socioeconômica da população árabe-israelense tenha melhorado sensivelmente nos últimos 30 anos, eles ainda são um setor com um alto percentual de indivíduos na linha da pobreza. O orçamento por aluno nas escolas árabes chega a ser 50% menor do que em escolas judaicas, e a violência castiga a sociedade árabe-israelense de forma totalmente desproporcional: só um a cada 11 vítimas de homicídio em Israel são judeus, mesmos estes sendo 75% da população do país. O crime organizado não se choca com o poder público na sociedade árabe porque a Polícia não faz o seu trabalho, e estes números aumentaram durante a gestão Ohana. Por mais que perante a lei, árabes e judeus tenham os mesmos direitos em Israel, na prática isso não acontece. Árabes são parados e obrigados a mostrar documentação por seguranças para entrar em lugares públicos e privados em quantidades muito maiores que judeus. Há cada vez mais relatos de pessoas que não alugam nem vendem apartamentos para árabes, e não faltam acusações graves de programas sociais do Estado que privilegiam judeus em relação à população árabe. Tudo isso deveria ser combatido pelo Estado, que prefere fazer vista grossa, sobretudo quando fazem parte do governo segmentos ultradireitistas judaicos.
Em relação aos palestinos, a tragédia é ainda maior, e não é por descaso: é uma escolha do governo Netanyahu não avançar com as negociações por dois Estados. Israel construiu nos últimos 15 anos uma relação estável com a Autoridade Palestina (AP), que governa a Cisjordânia. Ainda que hostil a Israel, sobretudo no que diz respeito à diplomacia internacional, há cooperação em diversas áreas, sobretudo na de segurança: cerca de 40% dos atentados que poderiam acontecer em Israel são evitados pela AP (clique aqui). O Fatah, partido de Abu Mazen, que comanda a AP, reconhece o Estado de Israel e está disposto a negociar a divisão da terra em dois Estados. O movimento renunciou ao terrorismo, mantém seu braço armado praticamente por simbolismo (salvo algumas ações de boicote, há anos não há uma ação armada da Brigada de Mártires de Al-Aqsa contra israelenses), e é constantemente deslegitimado. Quando há confrontos com o Hamas, o Fatah não é convocado para intermediar o fim das tensões. O governo Netanyahu escolhe o Hamas como referência palestina por se adequar mais facilmente a seu discurso: é mais interessante para quem não deseja dividir a terra em dois Estados ver do outro lado um grupo terrorista e intolerante do que um moderado. Netanyahu não se senta com Abu Mazen em uma mesa de negociações há quase 10 anos, enquanto frequentemente negocia com o Hamas cessar-fogo, troca de prisioneiros e etc. Em parte dessas negociações o Hamas volta para casa com feitos que o Fatah não pode nem sonhar: maior flexibilidade nas fronteiras e no espaço marítimo e recebimento de quantias bilionárias, por exemplo (só governo do Catar transferiu ao Hamas com o consentimento de Israel 1,8 bilhão de dólares). A postura de agressão e intolerância a Israel faz com que o Hamas esbanje feitos, enquanto o Fatah acumula frustrações. O que esperamos que os árabes-israelenses aprendam com isso? Reprimidos são todos, mas um deles recebe algo pelas suas ações.
Some-se a isso um fato que não pode de forma alguma ser esquecido: os árabes-israelenses são parentes diretos dos palestinos da Faixa de Gaza, da Cisjordânia e de campos de refugiados no Líbano, na Síria e na Jordânia. São seus tios, avós, bisavós quem vive lá em situações de pobreza e opressão. Seus parentes diretos são bombardeados em Gaza, não apenas desconhecidos que falam o mesmo idioma. Não se pode esperar que essa população não tenha empatia por seu próprio povo, por sua própria família. E quando se junta à guerra em Gaza uma intervenção de Israel sobre o Portão de Damasco e a Mesquita de Al-Aqsa, o barril de pólvora está aceso. Os árabes sentem-se atacados no plano real e no simbólico. O que esperar?
São 12 anos de governo Netanyahu, e os resultados estamos colhendo agora. A crise apareceu como um raio, como se tudo estivesse normal e de repente explodisse. A pandemia maquiou a situação, mas também devemos citar o julgamento de Netanyahu como um catalisador do processo. Ao perceber que sua impopularidade aumenta, e ao ver seu governo cada vez mais próximo do fim, Netanyahu deixou o bom senso que lhe restava de lado e passou a atuar abertamente com todas as armas disponíveis para se agarrar a seu cargo com toda a força. Cada vez mais isolado por políticos com algum apreço pela democracia, Netanyahu abraçou os segmentos da política israelense mais autoritários e obscurantistas: (a) os partidos ultra-ortodoxos, cuja relação com o Estado de Israel é controversa, sendo parte desses grupos antissionistas e avessos à soberania da lei do Estado sob a lei religiosa; (2) e as parcelas mais radicais dos ortodoxos nacionalistas, com o destaque ao setor kahanista (seguidor do rabino Meir Kahane, representado pelo deputado Itamar Ben-Gvir), com posições assumidamente racistas, misóginas e homofóbicas, e igualmente sem grandes amores pelo Estado democrático de direito. Curioso que foi justamente seu partido, o Likud, que nos anos 1980 trabalhou para que o partido de Kahane fosse banido da Knesset, e agora é Netanyahu quem intermedia as negociações que recolocam este grupo no parlamento. Em específico este último grupo tem posições anti-árabes e islamofóbicas sem absolutamente nenhum pudor, e, como vimos, não tem absolutamente nenhum problema em incitar a violência e provocar o caos. De excluídos e marginalizados, estes sujeitos hoje recebem ministérios, comissões na Knesset, lugar cativo nos meios de comunicação e são legitimados. Suas posições influenciam cada vez mais gente, e os atos são vistos no dia a dia em Israel: membros da imprensa estão sendo atacados mais do que nunca, o judiciário é criminalizado por discursos de ministros do alto escalão, e os árabes são coletivizados e tratados como inimigos. O próprio comandante-chefe da Polícia, recentemente nomeado por Amir Ohana, Kobi Shabtay, afirmou que Ben-Gvir atua como principal incitador nas redes sociais de extremistas judeus, e que é necessário parar os terroristas dos dois lados. Smotrich e Ohana rapidamente condenaram a fala de Shabtay, que agora passou a ser inimigo público de apoiadores de Netanyahu por ter ousado comparar a barbárie de árabes com a de judeus. Smotrich diz que um judeu que joga um coquetel molotov em civis não é terrorista, mas um árabe o é. Se algo não for feito para que este pensamento não se torne parte do mainstream, a democracia israelense ruirá de forma tão meteórica quanto foi a trajetória de Mansour Abbas como líder moderado dos árabes-israelenses. São tempos decisivos para o futuro do Estado hebraico, que deve decidir que deseja ser democrático, ou algo que ainda não se pode nomear, mas que mescla os piores elementos do populismo com o autoritarismo secular e teocrático.
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Foto de capa: By Israel Police, CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=105196341
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