top of page

A Paz Negativa



Originalmente publicado em 11/02/2015, no Conexão Israel


Shalom significa “paz” em hebraico. Os israelenses, ao se cumprimentarem, dizem “shalom”. Na entrada do Shabat (sábado), se cumprimenta as pessoas com um “shabat shalom” (“tenha um sábado de paz”). Paz é uma palavra extremamente positiva, em todas as línguas. Poucas, no entanto, usam tanto o vocábulo como o hebraico.


Um dos cumprimentos tradicionais em hebraico é Shalom Alechem (“que a paz esteja convosco”), parecido com o Salam Aleikum árabe. É possível referir-se a um falecido com Alav haShalom (“paz sobre ele”, mas usualmente traduzível como “que descanse em paz”). O vocábulo pode ser utilizado de outras formas, por exemplo quando se diz Chas VeShalom (literalmente “piedade e paz”, mas adaptável para “Deus me livre!”). Shlom Bait (“paz da casa”), é um conceito talmúdico, espécie de benção aos recém-casados, que cada um cumpra com suas funções. Há mais alguns conceitos mais ou menos usuais do termo shalom, todos positivos. Todas as expressões listadas acima são extremamente positivas: quando se deseja shalom, se deseja algo bom. Certo?


Nem tanto. É impressionante, mas o termo shalom conseguiu, sabe-se lá como, adquirir uma conotação negativa no dia-a-dia israelense. Obviamente não me refiro às expressões listadas acima, nem ao uso do vocábulo como cumprimento. Me refiro à tradução literal do termo: paz. Sim, caro leitor. É isso mesmo que você está pensando. O termo “paz”, em Israel atualmente, tem conotação negativa para boa parte da população. Especialmente em período pré-eleitoral.


Recentemente, em uma propaganda eleitoral, o partido Likud, mostrou a estranha conotação que recebeu o termo. Um casal sai e deixa o primeiro-ministro Binyamin “Bibi” Netanyahu cuidando de seus filhos, como baby-sitter (ou, como o primeiro-ministro se auto-intitula, Bibisitter). Ao regressarem, o cumprimentam com um sonoro “shalom!”. Bibi assim os responde: “não a qualquer custo”. Esqueçam que isto foi um jogo de palavras e reparem bem nesta resposta: queremos paz, mas não a qualquer custo. Ou seja, há alguma circunstância em que é preferível a guerra (ou o conflito) à paz. O termo utilizado foi paz. Não foi “acordo”. Não foi “criação do Estado palestino”. Não foi “devolver territórios”. O termo usado foi paz.


“Você está exagerando”, pode argumentar o leitor. Prossigamos, então. Em período eleitoral, nas propagandas em hebraico divulgadas no YouTube ou espalhadas em cartazes pelas ruas do país, o termo “paz” só apareceu de forma positiva por meio do partido Meretz, e, ainda assim, com menos frequência que no período pré-eleitoral de 2012/13. A União Sionista (fusão que inclui o Partido Trabalhista) não toca na palavra. Além do Likud, o partido A Casa Judaica também fez propagandas criticando a paz, sobretudo quando os discursos envolvem o outro lado: tanto o ex-ministro da Defesa, Amir Peretz, quanto o líder do União Sionista foram ridicularizados pela campanha somente por afirmarem que há chance de alcançarmos a paz.


O receio de referir-se à paz como algo positivo afeta diretamente os partidos cujas principais bandeiras há até pouco tempo atrás fosse um acordo de paz. A própria expressão, “acordo de paz” (eskem shalom) foi substituída, tanto nas plataformas políticas, quanto na mídia, pela sentença “solução política” (esder medini). Na prática, ambas querem dizer rigorosamente o mesmo. A diferença é que a locução “shalom” foi rifada. Mais um sinal.


Saímos da política, mas nem tanto. Não é raro que saibamos de pessoas que são ofendidas nas ruas do país por desfilarem com camisetas de grupos como o Shalom Achshav (Paz Agora), ou o Lochamim LaShalom (Guerreiros pela Paz). Qualquer movimento que carrega a alcunha “shalom” no seu nome (ou entre suas propostas) é potencial vítima de maus olhares, ofensas pessoais ou, em caso mais remotos, até de agressão física. Irônico que os que pedem a paz recebam violência. A questão é que, neste caso, o antônimo natural de paz não é exatamente violência, como tentou alertar o ex-primeiro-ministro Itzhak Rabin em discurso público no dia de seu assassinato. Infelizmente o termo foi deturpado, e hoje faz o contraponto com realidade ou bom senso.


Seria aceitável (embora eu individualmente não esteja de acordo) que os críticos da “paz” fossem céticos em relação a um possível acordo com os palestinos. Ser contra o acordo é compreensível, diferentemente de ser contra a paz. Não posso aceitar que paz seja de forma alguma um conceito negativo. Até mesmo a chamada “paz fria”, como alguns pesquisadores classificam os acordos feitos com Egito e Jordânia, não causou absolutamente nenhum mal a Israel. A paz é preferível ao conflito, e me espanta que haja quem questione esta máxima. O mesmo não se aplica necessariamente ao termo “acordo”, pois este não necessariamente traria paz à região.


A cientista política Dália Gabrieli Nuri, do Centro de Estudos Hadassa de Jerusalém, divulgou em 2012 uma pesquisa sobre os diferentes usos que a palavra “shalom” tem no campo político. Em sua obra “A Paz no Discurso Político em Israel”, tanto na direita quanto na esquerda, a paz é o objetivo final. Os dois lados, no entanto, se diferem bastante no uso do termo, tanto em discursos como nas práticas. Nesta entrevista ao diário Haaretz, em outubro de 2012, a pesquisadora mostrou que Netanyahu utilizou o termo “shalom” 44 vezes no seu famoso discurso na Universidade Bar-Ilan, quando admitiu que deve existir um Estado palestino. É válido reiterar que, em campanha eleitoral, o termo desaparece por completo da campanha do Likud, exceto em ocasiões negativas, como citado em alguns parágrafos acima. O famoso discurso na Universidade Bar-Ilan se deu poucos meses após as eleições, ou seja, após a campanha eleitoral. Por outro lado, a autora fala sobre a conotação negativa que a palavra tem em discursos políticos através de expressões como “preço da paz”, “sacrifícios pela paz” ou “não há paz sem lágrimas”. Ou seja, mesmo quando o termo “shalom” tem conotação positiva, é transformado em algo negativo através das expressões que se criam a partir dele.


Alguns alegam que falar de paz é um tabu, pois os Acordos de Oslo, que prometiam paz, não a trouxeram. Talvez isso explique porque o único partido judaico que fala de paz tenha menos de 5% dos votos no país, com possibilidade de ter menos ainda nestas eleições segundo as últimas pesquisas. A meu ver, infelizmente, paz não é um tabu: é um vocábulo mais negativo que positivo. Durante a última operação em Gaza, em julho de 2014, quem falasse sobre paz em círculos públicos era um sujeito corajoso.


Nem sempre foi assim. Shalom era, até os anos 1990, um termo positivo. Hoje os eleitores da direita radical falam em vítimas da paz (korbanot hashalom). Há alguns anos o líder máximo da direita sionista (por quem não tenho nenhuma simpatia ideológica) dizia o contrário. Confira o vídeo abaixo e veja como regredimos neste aspecto.




留言


bottom of page