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A mídia israelense e a guerra em Gaza

O confronto iniciado em 07 de outubro de 2023 gerou repercussão e mobilização sociais acima da média. A mídia internacional, através dos mais diversos veículos, realiza ampla cobertura (na medida do possível), e, assim sendo, influencia, nas mais diversas formas, na formação da opinião pública mundial. Se os dias que sucederam o massacre organizado pelo Hamas, a mídia internacional, de forma geral, reproduzia aquelas cenas e histórias pessoais, e repercutia aquele evento, nos meses seguintes, os veículos passaram a cobrir essencialmente a ação militar israelense na Faixa de Gaza, as milhares de mortes, a destruição total e a catástrofe humanitária que caracterizam o dia-a-dia dos palestinos daquela região até hoje. Evidentemente, tal modelo não se encaixa perfeitamente a todos os meios de comunicação: há aqueles que ocultam e manipulam fatos, contribuindo para o negacionismo de um lado ou de outro. Neste artigo, analisaremos o papel da mídia israelense na cobertura do conflito, e seus possíveis efeitos na formação da opinião pública local.


A mídia israelense e suas nuances

Apesar do desenvolvimento da internet e das redes sociais, em Israel ainda é gritante a influência dos meios de comunicação tradicionais na população em geral: televisão, rádio e jornais (impressos ou digitais). Influencers de redes sociais, canais de informação paralelos, sites independentes, todos estes fatores que alteraram a difusão e a qualidade da informação em boa parte do mundo, em Israel ainda são periféricos.


Talvez devido ao conflito, cuja situação submete a população a permanecer em alerta constantemente, alguns dos principais meios de comunicação, como o rádio, seguem tendo uma relevância ímpar. A cada hora, todas as estações de rádio interrompem a sua programação, e dão as notícias mais frescas possíveis, em não mais que 5 minutos. Isso inclui a situação militar, a política local, notícias internacionais, a previsão do tempo, e eventualmente cultura e esporte. É comum que o ouvinte que esteja escutando música, um programa de cotidiano ou mesmo as notícias, aumente o volume nessa hora para escutar com atenção resumo da última hora. Os jornais impressos, obviamente, ganharam versões digitais, mas seguem prestigiados. E a televisão é um caso curioso.


O espectro dos meios de comunicação israelenses


O Rádio

A principal estação de rádio do país é a Galei Tzahal (ou Galatz - Ondas das FDI), a rádio do exército. As forças armadas ainda têm uma outra estação, exclusiva de música, a Galgalatz. Apesar do nome sugerir o contrário, a Galatz é uma estação independente, com jornalistas contratados, muitas vezes críticos ao governo, e os soldados trabalham somente nos seus bastidores. Eu sou daqueles favoráveis ao fechamento da Galatz, não faz sentido que em pleno 2024 as forças armadas sustentem uma estação de rádio, e isso tem sido uma polêmica no país. O comandante da Galatz é nomeado pelo chefe das forças armadas, e já houve diversas tentativas de interferência do governo nessa nomeação. A segunda maior estação não menos polêmica, é a Rádio Kan Reshet Bet, a rádio estatal, que também transmite essencialmente notícias. Houve uma licitação, uma série de normas devem ser cumpridas, mas a empresa vencedora tem independência para coordenar a grade. E, na minha humilde opinião, a Kan é a melhor emissora de rádio (e de televisão) do país, apesar dos seus muitos problemas. A terceira maior emissora é a 103FM (também de notícias), que tem uma parceria com o Canal 12 de televisão. Adiante falaremos da Rádio Galei Israel (Ondas de Israel).


A Televisão

A televisão é um caso ainda mais complexo. Até os anos 1990, só havia um canal de TV aberta em Israel, a TV pública. Com o tempo, outras empresas ganharam concessões, e para cada estilo de programa havia uma concessão distinta. Para telejornais, por exemplo, é necessário se adequar a uma rígida demanda do Estado. Com o tempo surgiram os canais 2 e 10, que, após uma reforma, passaram a ser os canais 12 e 13. O antigo canal público se transformou no Canal 1, atual Canal 11 (da Kan). Telejornais ocupam entre ¼ e metade da grade dessas três emissoras. Você não leu errado: enquanto no Brasil a Rede Globo transmite cinco ou seis novelas por dia, em Israel o Canal 12 transmite sete ou oito telejornais, inclusive no horário nobre. O Canal 12, inclusive, é disparado o líder na audiência, geralmente alcançando números equivalentes a todos os outros somados. As três emissoras são conhecidas por realizar um jornalismo independente e crítico (para os padrões israelenses), e têm como ponto forte seus programas de jornalismo investigativo e de entrevistas políticas. Segundo a historiadora Anita Shapira, o jornalismo investigativo israelense foi o maior promotor de celebridades políticas em Israel: ao mesmo tempo que políticos têm suas carreiras encerradas por conta de tais reportagens, jornalistas se lançam à política frequentemente, ocupando lugar de destaque, como foi com Yair Lapid, Shelly Yechimowitz, Gideon Sa’ar, Nitzan Horowitz, Miki Haimovitch, Boaz Bismuth, Sharon Gal, entre outros. 


Estas três emissoras transmitem o jornalismo mainstream: o idioma é unicamente o hebraico, com raros comentaristas árabes (jornalistas de campo há em número razoável), de orientação visivelmente sionista e com muito pouco foco em questões internacionais que não envolvam os EUA, a Europa ocidental, a Rússia e o Oriente Médio. Há diferenças na linha editorial? Sim, poucas. O Canal 13 vinha sendo mais oposicionista, mas passa por uma grave crise, e os donos do canal contrataram Yulia Shmalov-Berkovitch como diretora jornalística. Pró-Netanyahu, Yulia não tem carreira na área de jornalismo e sua contratação gerou forte reação dos jornalistas do Canal 13. Uma carta pública, assinada por mais de cem funcionários, ameaça de greve e algumas demissões já mostraram que a crise veio para ficar.


Em 2012, um grupo ganhou uma licitação do governo para um canal cujo objetivo era transmitir uma programação de história, cultura judaica e tradições, e em 2014 foi criado o Canal 20. Altamente politizado (à direita), o canal entrou com um pedido para transmitir um telejornal próprio, o que sua concessão não permitia. Em 2016, a permissão para um telejornal foi concedida, mas uma série de multas foram aplicadas por descumprimento da licitação. Ao invés cassar a concessão, o então ministro das Comunicações, Ayub Kara, alterou a lei, obrigando os canais temáticos a exibirem 51% da sua programação de acordo com o tema exigido na licitação, e tendo liberdade para transmitir o que desejassem nos outros 49% do tempo. O Canal 20, então, investiu pesado no telejornalismo, fez uma parceria com a Rádio Galei Israel de cooperação de notícias, até que, em 2021, eles venceram a licitação para a abertura de mais um canal regular aberto, o Canal Agora 14 (chamaremos de Canal 14). O canal não tem transmissão durante os sábados (no próprio 07 de outubro, o canal não transmitia nada), e possui uma orientação voltada à direita (sobretudo ortodoxa) e pró-Netanyahu. Não há nenhum expoente no canal que manifeste posições de centro, quanto mais de esquerda.


O programa jornalístico das 20h vinha tendo o Canal 13 como o segundo colocado durante a guerra, mas a nomeação de Yulia Shmalov-Berkovitch fez com que o Canal 14 os ultrapassasse. Em junho, o medidor de rating ICE trouxe os números abaixo.



Jornais impressos e digitais

Até os anos 1980, em Israel havia uma imensa gama de jornais impressos, a maioria existente desde a época do Mandato Britânico. O Davar era o jornal da Histadrut, a central sindical israelense, e foi extinto em 1996. O HaOlam Haze, dirigido por Uri Avinery (1923-2018) de 1950 ao seu fechamento, em 1993, era uma revista semanal da esquerda radical, famosa por reportagens que derrubaram ministros e prefeitos. Três grandes jornais resistiram durante todos estes anos, e um quarto foi criado. Ao tradicional jornalão de esquerda, Haaretz (1919), o oposicionista Yediot Ahronot (1939) e o centrista Maariv (1948) somou-se o direitista Israel HaYom (2007), criado pelo bilionário estadunidense Sheldon Adelson (1933-2021), a pedido de Binyamin Netanyahu, que necessitava um folheto a seu favor. O Israel HaYom é distribuído gratuitamente, e hoje é o jornal mais lido em Israel junto ao Yediot Ahronot (cerca de 175 mil exemplares diários). O Haaretz tem 110 mil tiragens, enquanto o Maariv tem cerca de 90 mil. 


Nos últimos 10 anos, houve uma série de apelações à Suprema Corte contra o Israel HaYom, pelo fato de o jornal ser publicado com capital estrangeiro e ser distribuído gratuitamente, tendo um prejuízo mensal constante. A Knesset chegou a debater uma lei que proibisse este tipo de publicação, alegando que se tratava de propaganda política disfarçada, mas jamais foi aprovada. O Israel HaYom foi a primeira das tentativas (bem sucedidas) de Netanyahu a fim de construir uma mídia favorável a si. O jornal, o Canal 14 e a rádio Galei Israel funcionam como um conglomerado de comunicação bibista, que funciona abastecendo o nicho da direita raivosa e construindo determinados consensos entre este grupo. A inspiração de Netanyahu foi a Fox News, e podemos dizer que ele foi além.


Quando vamos ao mundo online, entram novos atores. Maariv e Israel HaYom têm sites relativamente pouco acessados. O site do Yediot Ahronot (Ynet) é o mais acessado em Israel, seguido de perto pelo portal Walla. Mas os sites do Canal 12 (Mako - N12) e do Kan são bastante acessados, tal qual o do Haaretz. Há uma gama de sites de notícias setoriais, ligados, por exemplo, aos ultraortodoxos (o Kikar HaShabat é o principal deles), o Makor Rishon e Sruguim, para o público dos sionistas-religiosos, o Mekomit (versão em hebraico do 972) da esquerda não sionista.


Como em qualquer lugar do planeta, o jornalismo tem tendências e as admite. Salvo os jornais e estações de rádio em árabe, quase toda a mídia israelense é sionista. Podemos excluir o Mekomit e o Kikar HaShabat, que pertencem a pequenos nichos, e teremos um fato: toda a mídia de mainstream israelense se considera sionista (nem todos os jornalistas), e é a partir deste viés que as notícias são transmitidas e reportadas.


O conflito na imprensa - de forma geral

Em uma conversa em 2013 com Mossi Raz, ex-parlamentar (Meretz) e ex-presidente do grupo Paz Agora (a entrevista completa está aqui) ele faz duas críticas à mídia israelense na cobertura do conflito, que eu transcrevo abaixo. A primeira, sobre a extensão e a importância da cobertura. A segunda, à forma como o conflito é reportado. Veja:


“O (...) tema do conflito árabe-israelense simplesmente desapareceu dos meios de comunicação no país. Se você abrisse o Haaretz há 10 ou 11 anos, daria de cara com seis ou sete páginas sobre o conflito israelense-palestino e outras quatro páginas sobre a economia. Se você abri-lo hoje, verá meia página sobre o conflito e outras 64 páginas sobre economia. E isto é o Haaretz! Para Yediot Ahronot, Maariv, Israel HaYom, não há palestinos.”

“Os meios de comunicação, eu acho que conceitualmente, são unilaterais. Por que a mídia é unilateral? É unilateral porque se ela fala hebraico, fala para os israelenses. Se fala árabe, fala para os palestinos. Para os israelenses, ela fala o que os israelenses querem escutar. E para os palestinos ela fala o que os palestinos querem escutar. Assim acontece quando, por exemplo, eu recordei quando começou a Operação Chumbo Fundido (2008-09): por 50 dias os palestinos dispararam no sul de Israel. Todos os dias caíram foguetes. E em Israel, todo tempo diziam: “os palestinos nos disparam, os palestinos nos disparam! Vejam as fotos das casas destruídas!”, e por aí vai. E então não há mais nada. Não se explica este tipo de coisa. E aí Israel reage com a sua operação, e em um dia morrem 220 pessoas. E os palestinos não compreendem: “Por que nos atacaram?” Eles não sabem! E o que escreve o Yediot Ahronot sobre estes ataques? Logicamente o título não é “220 palestinos mortos”, mas sim “250 mil israelenses sob ataque”. Isto significa que nós somos sempre as vítimas e eles são sempre os agressores. Isto acontece nos dois lados. Tanto os israelenses quanto os palestinos recebem diariamente uma educação que diz que eles são os coitados, eles são as vítimas, e os outros só querem matá-los. Desta forma é impossível viver. Eu darei outro exemplo: eu observei as notícias do Canal 2 no dia 19 de novembro de 2012, durante a Operação Pilar Defensivo. Neste dia, nenhum israelense foi ferido. Durante 30 minutos só foram televisionados ruas destruídas, carros destruídos, apartamentos destruídos, o quanto sofrem os israelenses, e a necessidade de responder, e etc. Você certamente sabe do que eu estou falando. Por 30 minutos. No trigésimo minuto passaram a noticiar sobre Gaza, por 30 segundos. E disseram: “hoje, em Gaza, morreram 20 palestinos, dos quais dez eram civis e cinco eram crianças”. Eu enfatizo esta expressão: estes 20 palestinos não se equivalem nem mesmo a um carro israelense. Estas cinco crianças não equivalem nem mesmo ao pneu de um destes carros.”

Percebe-se que o conflito ocupava um espaço importante nas páginas dos jornais, segundo Raz, o que foi alterado com o passar do tempo. Isso se deve a uma série de fatores, sobretudo ao fato de a população israelense ter deixado de acreditar que o conflito possa ser solucionado. Se o tema é indigesto e traz desesperança, é melhor ignorá-lo. Afinal, trazer informação sobre uma temática que desagrada o leitor, do ponto de vista comercial, é um erro grosseiro. Pela mesma razão nós lemos muito pouco sobre o superaquecimento global nas páginas dos principais jornais do mundo: aborrece as pessoas, desespera, provoca ansiedade. Melhor tratar como um assunto periférico, e dar atenção quando não há escolha (ou seja, quando há escalada).


A outra crítica não é menos relevante, e tem relação com a questão comercial, mas também com a identidade dos principais veículos da mídia: os leitores são israelenses, que sustentam a narrativa israelense. Quem produz conteúdo, geralmente acredita nesta narrativa. E os jornais desejam transmitir esta mesma visão. O Haaretz é, possivelmente, o único órgão de toda a grande mídia israelense que traz o outro lado, a perspectiva palestina, contada por jornalistas israelenses e palestinos, e por cidadãos palestinos. Por essas razões o Haaretz representa somente entre 10 a 15% de toda a tiragem dos jornais impressos, e é o principal alvo de ataques da direita israelense. Todos os outros meios de comunicação relevantes em hebraico (sejam de rádio, televisão, impressos ou digitais) ignoram a situação dos palestinos. Quando não há como escapar do acontecimento (como “O Massacre da Farinha”, ou eventos do gênero), os casos são narrados sob a perspectiva militar israelense. Em outras palavras, a culpa é do Hamas. Para a grande mídia israelense, soldados e oficiais cometem erros, mas na maior parte das vezes, atuando de boa fé. A pequena minoria, aqueles que agem de má fé, são devidamente punidos. Porém, a responsabilidade pela imensa maioria das mortes de palestinos, pela ocupação militar dos territórios, pela péssima situação econômico-social daqueles que vivem na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, é única e exclusivamente das lideranças palestinas. Além disso, os números divulgados pelo Hamas (ou por outros órgãos palestinos) devem ser sempre questionados e rejeitados, pois trata-se de um grupo terrorista que mente e manipula. Se a reportagem não diz isso declaradamente, o comentarista de guerra dirá. Se ele não disser, um membro do parlamento, que estará sendo entrevistado, o fará, e não será questionado (neste ponto) pelos jornalistas. É desta maneira que a mensagem é transmitida. E é assim que se forma consensualmente a ideia de que os palestinos sofrem por responsabilidade deles mesmos. E eles são reduzidos a números, não têm nomes, suas histórias de vida não são contadas, suas idades são omitidas.


A mídia e a Guerra Espadas de Ferro

Não é necessário dizer que o dia 07 de outubro de 2023 contou com uma cobertura intensa da mídia, que se estendeu por muito mais tempo. Na realidade, é contínua até este momento. Diariamente, veículos da mídia israelense publicam reportagens tentando explicar a grotesca fala das FDI ao impedir a invasão a Israel, histórias de assassinados durante o ataque, de sobreviventes ou de sequestrados. O podcast do Ynet é um exemplo do impacto permanente daquele fatídico dia no cotidiano israelense: o programa é diário (de domingo a quinta-feira), cada dia tratando de um tema distinto, geralmente relacionado às notícias mais atuais. Todas as quintas-feiras, no entanto, o podcast conta a história pessoal de um dos sequestrados no dia 07 de outubro. Já são mais de 250 dias de guerra, e todas as semanas, os noticiários televisivos, os programas de rádio, os jornais impressos, todos os meios de comunicação, sem exceção, tratam do dia 07 de outubro como se tivesse acontecido há duas semanas. Neste caso, não se trata de manipulação. O evento foi, de fato, traumático para a população israelense. Não há um israelense sequer que não conheça alguém que foi morto, sequestrado ou que seja um sobrevivente daquele ataque. Foi o evento no qual mais judeus foram mortos em um só dia desde o Holocausto. Até mesmo se comparado com a Faixa de Gaza no atual confronto, não houve um dia em que tenham sido mortos 1200 palestinos. É natural que a mídia israelense dê importância a esta data.


Por outro lado, os acontecimentos na Faixa de Gaza são reportados de forma absolutamente parcial. Jornalistas israelenses não puderam entrar na Faixa de Gaza durante os três primeiros meses de confrontos, e, quando lhes foi permitido, se deu por meio de convites das FDI, que os guiou em breves incursões para que pudessem filmar e fotografar os túneis descobertos, a estrutura militar do Hamas e os avanços táticos militares. Com o tempo, passou a ser permitido aos jornalistas conversar com oficiais de baixa patente e soldados (reservistas e regulares), mas a cobertura não sofreu grandes alterações. 


Não há por parte de quase toda a mídia israelense uma cobertura em detalhes sobre a situação dos civis palestinos. As imagens de Gaza que circulam nesses meios são desconectadas do sofrimento humano. Os civis palestinos simplesmente não existem aos olhos da mídia israelense. Os raros momentos nos quais palestinos são entrevistados, ou suas histórias são contadas, são quando estes se opõem publicamente ao Hamas, falam frente às câmeras e os culpam pela destruição local. Os incidentes que chocaram o mundo, como o resgate dos reféns israelenses, que resultou em um alto número de mortes, ou a execução de um membro do alto escalão do Hamas em Rafah há menos de dois meses, cujo resultado foi um incêndio altamente mortífero em uma zona humanitária, foram transmitidos como um grande sucesso (o primeiro) ou como uma falha corriqueira (o segundo), por responsabilidade do Hamas. O porta-voz do exército, Daniel Hagari, fazia pronunciamentos públicos diariamente, transmitidos pela mídia televisiva, e suas palavras eram recebidas como a verdade absoluta e inquestionável. Tardou meses até que suas aparições cessassem, e que seus pronunciamentos começassem a ser questionados.


Como já tratamos, a mídia obedece a determinados critérios comerciais, e certamente não deseja aborrecer os consumidores. Em um momento de comoção nacional (e nacionalista), a própria mídia debateu publicamente seu papel de elemento unificador. Parte dos jornalistas diziam e escreviam publicamente que sua função era, também, a de elevar a moral nacional e das FDI. Nenhum canal de comunicação deseja ser responsabilizado por sensibilizar um reservista prestes a entrar em Gaza com a história do sofrimento das crianças palestinas*. A mídia, então, incorpora a visão do mainstream, e ajuda a construir a mentalidade deste mesmo senso comum, reduzindo drasticamente as possibilidades de que a população israelense possa ter qualquer contato com o que acontece do outro lado.


Neste contexto, frente a um evento traumático, chocante e doloroso como foi o 07 de outubro, a mídia sequer era questionada por sua posição assumida. A própria oposição, com exceção dos partidos de eleitorado árabe, respaldou a decisão do governo de iniciar uma guerra para aniquilar o Hamas. E segue respaldando-a, de forma acrítica. As divergências se dão no que se refere ao projeto para a Faixa de Gaza no dia em que a guerra acabar (e a maioria dos partidos de oposição crê que já passou da hora de encerrar a guerra). A mídia crítica e oposicionista se comporta exatamente como os parlamentares da oposição: respaldam as FDI e a justa causa da guerra, questionando e criticando parte das decisões do executivo.


A exceção à regra entre os veículos da grande mídia é o jornal Haaretz. Este meio conta com um número desproporcional de repórteres atuando em territórios palestinos, sejam eles judeus ou árabes. Três jornalistas mulheres se destacam, e foram as primeiras a romper a parede de vidro que separa a população israelense dos territórios: Amira Hass, judia, que vive há anos em Ramallah e notabilizou-se por reportagens que condenavam rigorosamente a ocupação, por meio de histórias pessoais de palestinos, e se dedicou a contar as histórias dos habitantes de Gaza desde o início da guerra. Hagar Shizaf, que recentemente foi premiada por suas reportagens sobre a ocupação e a violência e dos colonos na Cisjordânia. E, por fim, Sheren Falah Saab, jornalista árabe, com contatos na Faixa de Gaza, e responsável pela maioria das reportagens sobre a fome extrema, as graves dificuldades pelas quais passam os civis em Gaza, dando-lhes voz em hebraico, para que os judeus israelenses saibam que eles existem. Destaco outros dois jornalistas, Yasmin Levy e Roger Alpher, que têm criticado os meios de comunicação com frequência, e questionado a sua cobertura na guerra. Mas são todos do diário Haaretz, e são uma minoria até mesmo neste jornal.


Eventualmente, membros de movimentos pacifistas, como o Paz Agora ou o Standing Together são convidados para painéis jornalísticos na TV aberta (geralmente não no horário nobre), ou dão curtas entrevistas em estações de rádio. Suas posições são escutadas, ainda que tratadas como radicais ou excêntricas. Quem mais consegue, ainda que de forma discreta, transmitir a situação dos palestinos são os jornalistas árabes, geralmente na televisão, mas sem muita liberdade e tempo. O único jornalista árabe alçado ao posto de comentarista em telejornais, Muhammad Mejedla (Canal 12), desapareceu após o início da guerra, e raramente participa da programação.


Mídia nacionalista, povo ignorante

Não se pode afirmar que a mídia israelense funciona como meios de comunicação em uma ditadura porque há liberdade jornalística no país, e há muita crítica ao governo e ao poder. Os melhores jornalistas investigativos do país realizaram alguns de seus melhores trabalhos durante a guerra, justamente expondo corrupção, radicalismo, autoritarismo e incompetência de membros do governo. A mídia israelense tem liberdade para cobrir a realidade palestina, mas simplesmente opta por não fazê-lo.


Durante os dois ou três primeiros meses de confrontos, é compreensível que os ataques do 07 de outubro e a comoção com a guerra definam a pauta dos meios de comunicação. No entanto, após estes três meses, os israelenses foram privados do acesso às imagens das notícias que circulam o mundo todo sobre a realidade dos palestinos na Faixa de Gaza. O que os telejornais de todo o planeta transmitem é escondido dos israelenses, manipulado muitas vezes, de modo que a população, quando se depare com determinadas imagens, as negue, relativize ou construa uma narrativa para explicá-las. Desta maneira, forma-se um povo ignorante, disposto a servir cegamente às ordens dos comandantes militares, sem preocupar-se com o que de fato acontece. Toda a sociedade os defenderá. Isso gera o que eu chamo de impunidade passiva: soldados acreditam que podem decidir o que fazer, pois todo o país os apoia, e somente a sua narrativa dos fatos é a verdadeira. Nunca na história de Israel houve tanta indisciplina de militares como durante o atual confronto, o que parece piorar cada vez mais. Os meios de comunicação israelenses provocam cegueira, nacionalismo chauvinista e causarão danos profundos aos soldados e à sociedade.


Evidentemente que a mídia não é a responsável por todas as mazelas do país, e há outros atores tão ou mais importantes do que os meios de comunicação. O sistema educacional público, o militarismo exacerbado, o discurso público chauvinista, uma legislação que não combate racismo, xenofobia e incitação, são alguns deles. Populações não criam consensos do dia para a noite, não constroem uma mentalidade coletiva manipulados pela mídia, eles não têm tanto poder. Os meios de comunicação, no entanto, têm uma responsabilidade ímpar, pois ainda atuam em um país que lhes dá relativa liberdade de atuação, algo que vem sendo combatido pelo governo atual, seja criando uma imprensa marrom, ou incitando contra jornalistas da mídia que lhes desagrada. E esta mesma mídia de mainstream normaliza e legitima forças políticas que atuam contra ela. Se não decidirem combater o nacionalismo chauvinista por questões morais, deveriam fazê-lo por bom senso. Pelo bem delas mesmas, inclusive do ponto de vista comercial.


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*Não tenho experiência de ter vivido uma guerra em outro lugar que não em Israel, mas acredito que as mídias locais na Rússia e na Ucrânia não transmitam o sofrimento alheio causado por seus ataques. No caso palestino, temos uma pesquisa que nos dá um dado interessante: só 9% dos palestinos (6% na Cisjordânia e 13% na Faixa de Gaza) dizem ter visto vídeos de membros do Hamas cometendo atrocidades contra israelenses. E só 9% dos palestinos acreditam que o Hamas cometeu atrocidades contra israelenses. Entre os que não viram nenhum vídeo, só 4% acreditam que o Hamas cometeu atrocidades. Entre os que viram os vídeos, este número sobe para 44% (a maior parte dos outros 56% alegam que os vídeos foram manipulados por Israel). Para ler a pesquisa em inglês, clique aqui.


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Entre 1948-51


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