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A guerra que Israel perdeu



O movimento sionista sustenta dois mitos militares sobre o Estado de Israel. (1) Israel jamais iniciou uma guerra; (2) Israel jamais foi derrotada em uma guerra. Mito é um conceito antropológico, que, não necessariamente se refere a algo não verdadeiro, mas a narrativas construídas em busca de um significado coletivo, que se associam a identidade e pertencimento. O Estado de Israel, como potência militar, é um dos símbolos do sionismo, e, até mesmo, uma ferramenta de identificação explorada constantemente no contexto da identidade judaica. O recorte que farei neste artigo não pretende analisar o militarismo associado ao sionismo, nem o primeiro mito listado acima, mas sim, o segundo, no contexto da guerra atual (nomeada por Israel de “Guerra Espadas de Ferro”). Abordarei o tema a partir das seguintes questões: o que significa vencer uma guerra? O que poderia representar uma derrota na consciência nacional coletiva? Quais foram os objetivos e de que forma eles estão sendo buscados na guerra atual? Esta guerra pode ser vencida?


Um pouco de história

Desde que sua independência foi declarada em 1948, o Estado de Israel declarou oficialmente sete guerras, incluindo a atual. Houve também operações, como as ocorridas na Faixa de Gaza entre 2006 e 2023, as duas intifadas, e outros eventos*, que deixaremos de lado no momento.


As guerras travadas por Israel podem ser vistas na tabela abaixo (nomeclatura de acordo com a narrativa sionista, uma vez que ela será parte do objeto de estudo). 

Como vemos, as quatro primeiras se caracterizam por confrontos entre o exército israelense e exércitos regulares de outros países (com exceção da fase inicial da Guerra de Independência, entre novembro de 1947 e maio de 1948). As duas últimas foram confrontos nos quais os inimigos do exército israelense eram milícias palestinas/libanesas, localizadas em território estrangeiro (Líbano).


Com exceção da Guerra do Sinai (1956), nos confrontos contra exércitos regulares, as forças israelenses eram menos numerosas e possuíam armamentos em menor quantidade, ou até menos avançados que seus inimigos. Isso ajudou a reforçar o mito do pequeno e poderoso exército, com capacidades militares espetaculares, e vitórias lendárias contra forças mais poderosas. As explicações para tais vitórias vão do milagre divino à genialidade dos oficiais, passando por brilhantismo tático, superioridade moral, bravura dos soldados e senso coletivo de necessidade de vitória a qualquer preço. O fato é que, do ponto de vista militar, as forças israelenses derrotaram seus inimigos nestes quatro primeiros confrontos, e alguns de forma surpreendentemente avassaladora.


Do ponto de vista político, há quem relativize as vitórias em todos estes confrontos, sobretudo no último. A Guerra de Yom Kippur (1973) abalou a moral das forças armadas e do governo, expôs a fragilidade de Israel, apesar da sua superioridade militar, e forçou o país a negociar um acordo de paz com o Egito, no qual abria mão integralmente da Península do Sinai, conquistada em 1967.


Os confrontos no Líbano foram bem mais controversos, desde as razões para a entrada do país na guerra (longe de ser um consenso entre a população), até os resultados obtidos. Em 1982, inéditos protestos em meio à guerra questionavam absolutamente tudo: motivo, estratégia, lideranças, perdas internas e atrocidades cometidas pelo exército. Na segunda, basicamente, a crítica era por ter permitido a situação chegar a tal nível, no qual o inimigo havia adquirido tanto poder, somada a críticas à qualidade do exército durante os combates. A sensação ao fim destes conflitos foi distinta das guerras anteriores: a óbvia superioridade militar israelense não trouxe a perspectiva de paz, segurança e estabilidade prometidas, pelo contrário. E um agravante: ao contrário da Guerra de Yom Kippur, cujo resultado foi o primeiro acordo de paz com um país árabe, sabia-se que o mesmo não aconteceria no Líbano, sobretudo em 2006. Desde o início, o claro objetivo da guerra era algo desgostoso à população israelense: enfraquecer o inimigo, para que ele não ameace a nossa segurança. Algo temporário, não definitivo, e que, obviamente, levantava dúvidas sobre a necessidade de uma guerra para atingir tal condição. Vidas se perdem para evitar que potencialmente outras vidas se percam, em um intervalo de tempo desconhecido.


A vitória e a moral israelenses

Após a Guerra dos Seis Dias, a arrogância e a soberba israelenses davam as caras por todos os lados. Uma piada que contada na época ilustra o momento.


Em uma manhã de uma terça-feira qualquer, o comandante-chefe das forças armadas Itzhak Rabin e o ministro da Defesa Moshe Dayan conversavam.

- Dayan, estou entediado. O que podemos fazer para passar o tempo?

- Poderíamos conquistar um país árabe.

- E o que faríamos de tarde?


Para um Estado fundado há menos de 20 anos, um sucesso militar desta magnitude representava um orgulho nacional inimaginável. Pese na balança que, este mesmo povo que fundou tal Estado, havia passado há menos de 25 anos por um genocídio sem precedentes, somado a séculos de perseguições contínuas, inclusive após a criação do próprio Estado. De absolutamente indefesos, o sionismo deu aos judeus a sensação de invencíveis. Os mitos sobre o exército do Rei David, ou sobre a estrondosa vitória dos macabeus sobre os selêucidas, inspiravam a construção da narrativa sionista: os judeus novamente poderiam se defender de seus inimigos.

Reforçava o simbolismo o fato de que, naquele momento, as ameaças de dar fim ao Estado de Israel soavam reais e possíveis aos ouvidos dos israelenses. A população, em situação de pós-trauma por conta de diversos eventos históricos (sobretudo o Holocausto), acreditava piamente nas ameaças dos inimigos. A derrota, na mentalidade coletiva israelense, significava uma catástrofe, talvez da magnitude do próprio Holocausto. A vitória nas guerras era considerada essencial para sobrevivência do povo judeu, que havia sido vítima de uma tentativa de extermínio total há poucas décadas, da qual seus sobreviventes ainda circulavam por aí a dar seus testemunhos.


É fundamental uma reflexão sobre a mentalidade coletiva israelense, a fim de compreender o significado de uma derrota militar: o sionismo ergueu um Estado sob a alegação de proteger o povo judeu das perseguições das quais eram vítimas por quase dois milênios. O Holocausto teve forte contribuição para a construção da concepção de que o mundo jamais intercederá pelos judeus (isso, inclusive, foi dito pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu durante o ato oficial do Dia do Holocausto, no Museu Yad Vashem, em Jerusalém). Em outras palavras: somente os judeus poderiam garantir sua própria segurança. Some-se isso às ameaças e ações das principais lideranças árabes ao redor do mundo durante as primeiras décadas de existência de Israel, e temos um cenário de plena convicção por uma luta existencial.


As vitórias alcançadas nas guerras anteriores reforçaram tal convicção, e ajudaram a constituir o mito de exército invencível, plenamente vinculável ao temor constante pela aniquilação. Israel não era derrotada porque não podia se dar o luxo de perder uma guerra. Isso é o âmago das Forças de Defesa de Israel (FDI), assim deve ser. Assim será. Será?


Os objetivos das guerras e das operações

Parafraseando Carl Von Clausewitz, a guerra é a continuação da política por outros meios. Em outras palavras, as guerras e os conflitos armados têm objetivos políticos, alcançados parcialmente por meios militares. Quando um governo declara guerra, ele deve ter claros quais são os seus objetivos para quando o confronto termine, justamente para que seja possível traçar suas táticas e estratégias militares. Os objetivos militares são decididos em função do objetivo político.


Tomemos como exemplo a Guerra dos Seis Dias (1967): Israel se via constantemente ameaçada pelos líderes do Egito e da Síria, e sofria frequentes ataques de militantes palestinos, habitantes dos territórios (Faixa de Gaza e Cisjordânia), parte financiados pelos mesmos Egito e Síria. Ao decidir pelo ataque, os objetivos de Israel eram: (1) conquistar as pouco povoadas Península do Sinai e as Colinas do Golã, a fim de afastar os exércitos egípcio e sírio das suas regiões habitadas, estabelecendo margem territorial de segurança; (2) exercer o controle sobre o Estreito de Tiran, fechado pelo Egito, e que impossibilitava as embarcações a chegar ao Porto de Eilat, no Mar Vermelho; (3) conquistar a Faixa de Gaza e a Cisjordânia para impedir o treinamento e financiamento de milícias palestinas por países árabes inimigos de Israel. Frente a estes objetivos, foi traçada uma tática de guerra arriscada, mas bem treinada, que funcionou à perfeição. O governo israelense ainda tentou evitar que a Jordânia participasse da guerra, abrindo mão da conquista da Cisjordânia, mas a coroa sucumbiu à enorme pressão egípcia e embarcou no confronto.


Os três objetivos foram alcançados, de forma mais rápida que o planejado. Foi justamente por ter conquistado o Sinai que Israel estabeleceu a paz com o Egito, 12 anos depois. As Colinas do Golã seguem funcionando como uma margem territorial que impede os sírios de aproximarem-se às regiões povoadas de Israel, próximas ao Mar da Galileia (Lago Kineret). No entanto, Israel não possuía nenhum plano para administrar a Faixa de Gaza e a Cisjordânia. Isso tornou-se claro em 2017, quando foram abertas ao público as atas da reunião de gabinete de segurança, na qual o governo debatia sobre o que fazer com os territórios ocupados imediatamente após o fim da guerra. Havia uma divergência de opiniões, que englobavam devolvê-las ao Egito e à Jordânia, anexá-las ao território israelense, mantê-las ocupadas e usá-las como moeda de troca por armistícios duradouros ou um processo de paz contínuo, e muitas incertezas. Em suma: o governo não tinha um projeto para estas regiões, nem antes nem depois da guerra.


Hoje em dia, salvo para grupos messiânicos que desejam a anexação dos territórios, a Faixa de Gaza e a Cisjordânia representam problemas para a segurança de Israel - eu reitero que trato da questão sob o ponto de vista israelense, não palestino. Em 1993-95, o governo Rabin assinou os Acordos de Oslo com a OLP, repassando à recém-criada Autoridade Palestina (AP) determinada autonomia sobre os territórios, até que se encontrasse uma solução definitiva para a questão. Os Acordos de Oslo são uma tentativa inicial de resolver um problema ocasionado pela Guerra dos Seis Dias, uma guerra cujo lado vitorioso havia sido Israel. Ou seja: há um legado negativo dentro da vitória militar israelense, que são os territórios ocupados. Mesmo a direita secular israelense, que combateu os Acordos de Oslo em seu momento, jamais fez qualquer esforço para revogá-los durante os 24 (dos 29) anos nos quais governaram o país, desde então. Internamente, eles sabem bem que a ocupação dos territórios, e, sobretudo, da população palestina, representam um enorme problema para o Estado de Israel, dos pontos de vista da segurança, da moral, da economia, das relações internacionais, e do sionismo como um projeto de estado nacional judaico e democrático.

Outra prova de que a ocupação representa um problema é o fato de o Egito não ter exigido a mudança de status da Faixa de Gaza, quando assinou o acordo de paz com Israel, em 1979. O governo egípcio não desejava voltar a ocupar a região, e deixou a responsabilidade nas mãos de Israel.


Hoje, não são raros os historiadores israelenses que consideram que o ônus da Guerra dos Seis Dias é maior do que o bônus: são algumas de suas consequências a Guerra de Atrito (1967-70), a Guerra de Yom Kippur (1973), a ocupação (que permanece até hoje, com duas intifadas e inúmeros conflitos), uma crise diplomática de Israel com o bloco socialista e o sul global nos anos 1970, a deslegitimação do sionismo na esfera internacional, entre diversos outros efeitos internos.


A Guerra Espadas de Ferro

Peço licença para que saltemos algumas décadas até o momento atual. No dia 07 de outubro de 2023, Israel sofreu um ataque terrorista sem precedentes, que gerou mais de 1.200 mortos em um só dia. O Hamas e outros grupos palestinos surpreenderam as forças de segurança de Israel, cujo alerta era baixo naquele momento. Houve imensa demora na reorganização das forças, e até que a situação fosse controlada, o estrago era imenso. Além dos mortos, mais de 230 sequestrados. Destruição total de cidades, vilarejos, kibutzim e moshavim. Jamais um exército inimigo havia conseguido causar tanta destruição e morte em Israel em um só dia. O poderio militar do Hamas é inferior, inclusive, ao de outras milícias paralelas, como o Hezbollah, e incomparável à capacidade militar de Israel. A pane foi geral, possibilitada pela instabilidade interna do país, e negligenciada pelas forças de segurança e por sucessivos governos, durante anos.



No próprio dia do ataque, o primeiro-ministro Netanyahu declarou guerra ao Hamas. Ele fez questão de frisar que não se tratava de uma operação, como Israel caracterizou todas as incursões na Faixa de Gaza  de 2006 a 2023. Era uma guerra. Mil-cha-má (guerra, em hebraico), dita de forma pausada, separando cada sílaba, para que ficasse claro. Nos dias seguintes, o governo estabeleceu três objetivos para a guerra: (1) A aniquilação do Hamas (mantra repetido incessantemente); (2) A volta dos reféns, sequestrados no dia 07 de outubro; (3) o retorno dos civis às suas casas próximas à fronteira com a Faixa de Gaza, em situação de segurança e paz duradoura.


Para atingir estes objetivos, seria necessária uma ação militar, da qual foi lançada mão imediatamente. 350 mil reservistas foram convocados e treinaram exaustivamente durante duas semanas, até que a incursão terrestre avançou sobre a Faixa de Gaza. A população, ainda que reprovasse o governo, respaldou os objetivos da guerra, de modo que houve pouco questionamento aos objetivos traçados e à forma de alcançá-los durante os primeiros meses.


Não tardaria até que as incongruências fossem expostas à população, até então em estado de choque com o atentado do dia 07 de outubro. É possível aniquilar o Hamas por meios militares? Ao aniquilá-los, quem governará a Faixa de Gaza? Pode-se aniquilar o Hamas e, ao mesmo tempo, resgatar os reféns com vida?


Some-se a isso agravantes que surgiram durante a guerra: aos 120 mil israelenses desabrigados da fronteira com a Faixa de Gaza, adicionem outros 70 mil que vivem a até cinco quilômetros da fronteira com o Líbano, cujas casas passaram a ser atacadas pelo Hezbollah, que mostrava solidariedade ao Hamas. Palestinos eram mortos aos milhares, provocando forte pressão internacional para que Israel poupasse as vidas de civis. 


Para aniquilar o Hamas, o exército dizia ser necessário avançar, primeiramente, sobre o sul da Faixa de Gaza, onde se encontram as principais forças do grupo. Mas era do norte da região de onde saíam os foguetes que atingiam Tel-Aviv, Jerusalém e boa parte da população civil de Israel. O governo optou por priorizar a tranquilidade dos civis israelenses a atacar o Hamas onde o grupo era mais forte, e iniciou a incursão pelo norte da Faixa de Gaza. Para realizar a operação com uma incidência menor de civis mortos, Israel forçou o refúgio de cerca de 1,9 milhão de palestinos para um território que corresponde a menos de 40% da Faixa de Gaza, no sul da região. Eles estão lá até agora. Tanto os desabrigados, quanto a elite do Hamas. Sobretudo em Rafah, onde estão refugiados cerca de 1,4 milhão de pessoas, em uma área de 64 km2. Neste momento, para eliminar as quatro unidades militares do Hamas que ainda estão de pé, Israel necessita realocar este imenso contingente de pessoas, uma tarefa praticamente impossível.


Se do ponto de vista militar, aniquilar o braço armado do Hamas não parece ser uma realidade, do ponto de vista político, o governo simplesmente não esboçou nenhum plano que sequer sugerisse uma alternativa viável ao Hamas para exercer o controle da Faixa de Gaza. Enquanto é um consenso na comunidade internacional (ao menos entre os aliados de Israel) que a AP, com todos os seus inúmeros problemas, é a única força com legitimidade e viável para assumir o controle da região, o governo israelense tratou de incitar a população contra o Fatah (partido que comanda a AP), tratando-os como semelhantes ao Hamas. De fato, Netanyahu trabalhou arduamente durante 15 anos pelo enfraquecimento da AP, e convenceu seus eleitores (e até mesmo parte da oposição) que a AP não é uma parceira de Israel. Aceitá-los agora como alternativa, além de impopular, seria motivo de um racha no seu governo, sobretudo entre os fanáticos da extrema-direita religiosa, que ainda sonham em restabelecer a colonização judaica na Faixa de Gaza. Resultado: Netanyahu adia constantemente da pauta do gabinete de segurança o debate sobre a alternativa ao Hamas, deixando o país sem plano algum. Como consequência, recebemos constantemente notícias de que o Hamas, por meio de seu braço político-administrativo, retorna a localidades de onde o grupo havia sido expulso, ocupando justamente o vácuo deixado pela ausência de um plano.


A questão mais sensível e dolorosa para os israelenses, sem sombra de dúvidas, é a dos reféns. Há mais de 130 reféns na Faixa de Gaza há sete meses, no cativeiro do Hamas e de outros grupos. Partes dos reféns liberados no cessar-fogo de novembro alegaram estar sob péssimas condições de higiene, com comida e bebida escassas, além de terem sido vítimas de violência (de gênero, inclusive). O exército conseguiu resgatar apenas três reféns até o momento, e sabemos, hoje, que outros três reféns foram mortos em uma ação desastrada do próprio exército israelense. Não sabemos quantos ainda permanecem vivos, e o relógio não joga a seu favor. No entanto, os reféns são a principal arma que o Hamas tem em mãos para garantir a sua sobrevivência, e condiciona a sua libertação a um cessar-fogo duradouro, ou seja, ao fim da guerra. O encerramento do conflito na situação atual não cumpre com o objetivo de aniquilação do Hamas, e a promessa de retorno dos desabrigados à suas casas em segurança também cai por terra (ao menos, do ponto de vista psicológico). Se não ficou claro, a questão é a seguinte: a libertação dos reféns com vida automaticamente elimina a possibilidade de aniquilação do Hamas, e vice-versa. E a aniquilação do Hamas, sem um plano para o dia após a guerra, não passa de uma bravata. Hoje, o Hamas é a única autoridade local existente em Gaza, e, no caso de Israel deixar um vácuo na região, certamente será ocupado pelo Hamas. O braço armado do grupo pode ser eliminado por meio da guerra, mas a ideia por trás do movimento, não. E é questão de tempo até o Hamas ressurgir na Faixa de Gaza, caso não haja um grupo com aceitação popular, estrutura e recursos para ocupar seu lugar.


A derrota iminente

Ainda que Israel tenha destruído cerca de 70% de toda a estrutura da Faixa de Gaza, eliminado quase totalmente o arsenal de guerra do Hamas, parte relevante de seus túneis e matado ou neutralizado cerca de metade dos seus combatentes, a derrota neste confronto é uma certeza. Mesmo que Israel execute os três principais líderes ainda vivos do grupo na Faixa de Gaza, incluindo seu líder e idealizador do ataque do 07 de outubro, Yehia Sinwar, é pouco provável que alguém comemore uma vitória. A superioridade militar de Israel não é suficiente para determinar uma vitória, como não foi para os EUA na Guerra do Vietnã. Não é a matemática entre o número de baixas dos dois lados o que define vencedor e perdedor em um conflito militar, mas quem atingiu seus objetivos políticos. Neste aspecto, Israel, após sete meses, não conseguiu alcançar nenhum deles.


E o Hamas? Sinwar jamais tornou públicos os seus objetivos ao atacar Israel no dia 07 de outubro. A julgar pela retórica do grupo, e se tomarmos como uma pista a conferência realizada pelo Hamas em outubro de 2021, na qual foi debatido o plano para o dia depois de reconquistar a Palestina, a ideia era, de fato, derrotar o exército israelense e reconquistar a Palestina. Eu, particularmente, não acredito que este foi o objetivo traçado pelo grupo, pelo menos no curto prazo. Eu entendo que, ao atacar Israel com tamanha brutalidade, os dirigentes do Hamas sabiam que haveria uma guerra feroz como consequência, e estavam dispostos e preparados para esta situação. O que desejavam, então? Segundo a minha percepção, o Hamas tinha quatro objetivos: (1) trazer a questão palestina novamente para o centro da pauta global; (2) abalar a moral israelense a partir de um ataque surpresa, que demonstrasse a fragilidade da segurança, do exército e da sociedade israelenses; (3) transformar a região da fronteira com a Faixa de Gaza em um lugar de memória de um massacre, fazendo com que israelenses não desejem voltar a habitar o local; (4) libertar o maior número possível de presos palestinos.

No momento, podemos dizer que os objetivos 1 e 2 foram totalmente alcançados, e os objetivos 3 e 4 tiveram resultados parciais. Durante a guerra, possivelmente mais atroz e mortal do que o Hamas poderia prever, o grupo se deparou com uma nova questão: como permanecer como governo na Faixa de Gaza? A resposta israelense foi tão brutal e sem precedentes, que, de fato, o Hamas teve de adicionar um novo e mais importante objetivo a si: a sua própria sobrevivência. Entretanto, o grupo se deu conta de que, do outro lado, Netanyahu também luta pela sua sobrevivência (e demonstrou inúmeras vezes que seus objetivos políticos são preferíveis aos da população israelense). Se por um lado, tal condição aparenta um risco maior ao Hamas (uma vez que Netanyahu parece disposto a sacrificar os reféns e os soldados para que não tenha que sacrificar sua coalizão), por outro, ficou claro que, enquanto Netanyahu estiver no poder, não haverá nenhuma movimentação no sentido de fortalecer qualquer grupo palestino que substitua o Hamas - e isso garante a sobrevivência do grupo como poder em Gaza.


Netanyahu facilita uma vitória ainda mais significativa para o Hamas, pois, ao mesmo tempo, não pode destruí-los, não permite o retorno dos desabrigados a suas casas, e nem traz os reféns de volta. A ausência de um plano não é uma “falha” do governo, é absolutamente intencional. Há derrotas em confrontos que são causadas pela incapacidade de cumprir determinado objetivo. Esta é a primeira vez que eu presencio uma guerra na qual um dos lados se esforça para não cumprir com os objetivos traçados por si mesmo.


Duro será quando a população israelense se der conta, quando cair a ficha que Israel perdeu essa guerra. Qualquer vitória já teria um sabor amargo, frente ao que foi o 07 de outubro e o trauma que o evento vai deixar em algumas gerações. No entanto, havia uma oportunidade de uma reconfiguração regional, eliminando o Hamas como ator importante no jogo e substituindo-o por uma autoridade menos hostil a Israel.


A população já compreendeu que Netanyahu permitiu durante anos o fortalecimento do Hamas, auxiliando na entrega de malas de dólares vindas do Catar ,diretamente para as mãos de Sinwar, sem qualquer fiscalização. Ou quando ignorou o relatório do Mossad que informava sobre empresas pertencentes ao grupo no exterior, que representavam ingressos de centenas de milhões de dólares. Não só ignorou o relatório, como ordenou o fechamento da divisão de investigação financeira do Mossad. Como o atual ministro das Finanças de Israel disse em 2015, o Hamas é um bem (para Israel). Empoderar um inimigo intransigente é fundamental para quem não deseja negociar um Estado palestino. Não por acaso, os deputados da extrema-direita israelense desmerecem em público a questão dos reféns. Na sua visão, eles não passam de sangue a ser derramado em prol de sua causa. 


Israel será derrotado na guerra. Não pelo Hamas, mas sim pela extrema-direita, comandada por um líder narcisista, egocêntrico e facínora, apoiado por uma coalizão de fundamentalistas religiosos bárbaros, ignorantes, racistas e neofascistas. Graças a eles, o Hamas existe. Graças a eles, seguirá existindo. Pelo menos a curto prazo.


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*A historiografia israelense, por vezes, considera a Guerra de Atrito (1967-70), entre Israel e o Egito, como uma guerra (como mostra o próprio nome), o que eu ignorarei neste texto por se tratar de uma situação contínua, com características distintas dos outros confrontos.

**Exército Árabe de Libertação (EAL): milícia formada por árabes palestinos e voluntários/mercenários de outros países; Organização pela Libertação da Palestina (OLP): confederação de partidos/milícias palestinas; Amal: movimento nacionalista libanês secular, formado essencialmente por xiitas; Hezbollah: partido/milícia xiita fundada no Líbano em 1982.

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Fotos:

Foto de capa: Own work. Autor: Chenspec. Tirada em 15/12/2023, às 18h07, da Praça dos Sequestrados, em Tel-Aviv.

Foto 2: Yitzhak Rabin, Moshe Dayan e Uzi Narkiss entrando na cidade velha de Jerusalém, em 06/06/1967. Retirado do site

Foto 3: O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu aperta a mão do presidente da Autoridade Palestina, Yasser Arafat, durante sua reunião no posto de controle de Erez, na Faixa de Gaza (04/09/1996). Foto de Milner Moshe. Government Press Office. https://www.flickr.com/photos/government_press_office/6368535811

Foto 4: Muro dos Sequestrados - Guerra Espadas de Ferro. Fotografia de todos os israelenses sequestrados em Gaza, e cartazes apelando à sua libertação foram pendurados ao longo do Muro de Kirya, em Tel Aviv. Autor: Lizzy Shaanan, em 14/10/2023.


1 commentaire


Membre inconnu
10 mai

Lembro da frase (aproximado disso) "vitória da guerra serve para a construção de uma política melhor", do documentário The Gatekeepers de Dror Moreh.

Infelizmente vemos que a região se afunda em um buraco.

Mas, sigamos tentando, em todos os lados, a afastar esse futuro sombrio.

Ah, e mabruk (parabéns) pelo site.

Salam!

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