A guerra contra o Hezbollah - possíveis efeitos para Israel
- 24 de jun. de 2024
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Atualizado: 25 de jun. de 2024

Nas últimas semanas, é cada vez mais perceptível que o governo israelense partirá para uma guerra contra o Hezbollah. O alarme falso já soou duas vezes, em outubro de 2023 e em maio de 2024. Desta vez, no entanto, há razões o suficiente para acreditar que a escalada ultrapassará o limite da guerra de atrito dos últimos oito meses, e se transformará em uma guerra real, de longo alcance, com milhares de vítimas e consequências desastrosas. Neste artigo eu proponho explicar a relação entre o Estado de Israel e o Hezbollah, com foco nos últimos meses, as razões para o iminente confronto, e suas possíveis consequências.
O Hezbollah
Hezbollah (em árabe حِزْب اللّٰه, - Hezballah: Partido de Allah) é um movimento islâmico xiita, com braços políticos e armados, originalmente fundado no Irã. O grupo se estendeu para o Líbano em 1982, justamente na esteira da Primeira Guerra do Líbano, com o objetivo de combater a presença israelense no sul do país. Além das ações militares contra a ocupação israelense, o Hezbollah também realizava ações assistencialistas a populações carentes, sobretudo da comunidade muçulmana xiita, o que fortaleceu sua posição na sociedade libanesa. Posteriormente, o grupo fundou seu partido político, hoje com 15 cadeiras no parlamento e dois ministérios no governo libanês.
O Hezbollah não se envolveu, ao longo dos anos, somente em ações contra Israel. O grupo é acusado de atentados terroristas contra comunidades judaicas ao redor do mundo (como o edifício da AMIA, na Argentina, em 1994), e teve forte envolvimento na guerra civil na Síria, lutando ao lado das forças do presidente Bashar el-Assad.
A retirada unilateral das forças israelenses do sul do Líbano, comandada pelo ex-premie Ehud Barak, foi vendida pelo Hezbollah à sociedade libanesa como uma vitória da sua resistência contra a ocupação sionista. Em 2006, uma escalada levou a uma guerra entre Israel e o grupo, com milhares de mortos e refugiados, que foi seguida de um acordo, mediado pela ONU, no qual o território ao sul do Líbano seria ocupado por capacetes azuis (forças internacionais da ONU). O período foi marcado por uma estabilidade razoavelmente pacífica, até a escalada ocasionada pelo ataque do Hamas no dia 07 de outubro de 2023. A fim de auxiliar o grupo palestino, o Hezbollah tensionou a fronteira, e, desde então, os combates são diários, com bombardeios, disparos, mísseis e drones atuando dos dois lados, que deixaram cerca de 30 israelenses e mais de 350 libaneses mortos.
O confronto desde o 07 de outubro
Imediatamente após o ataque do Hamas, o Hezbollah entrou em alerta máximo. O grupo xiita parabenizou o Hamas pela ofensiva, e tensionou a fronteira já no dia 8 de outubro. Curiosamente, os cerca de 10 mil capacetes azuis da UNIFIL (ONU) tornaram-se uma presença obsoleta na região, sem qualquer controle sobre os acontecimentos. Desde então, Israel evacuou cerca de 60 mil habitantes que vivem a até cinco quilômetros da fronteira, convocou reservistas e transportou uma grande quantidade de blindados para a sua região norte. Durante as duas primeiras semanas de confrontos, o governo israelense, de fato, preparou suas forças armadas para um ataque ao Hezbollah no Líbano. Como morador do norte, sou testemunha de que o barulho de aviões e helicópteros militares foi ininterrupto durante, ao menos, 14 dias. O ministro da Defesa, Yoav Gallant, não escondeu seu desejo em antecipar-se ao Hezbollah e lançar um ataque preventivo, e sua sanha foi contida por uma negativa do governo estadunidense. Essa informação foi divulgada no dia 8 de abril pela jornalista Moriah Asraf Wolberg, do Canal 13 de televisão.
O papel dos EUA nesse tensionamento é crucial. Logo no início dos confrontos, o governo Biden enviou um porta-aviões ao Mar Mediterrâneo, em um claro sinal ao Irã, ao Hezbollah e a outros grupos que arriscassem somar-se a um potencial ataque a Israel (interessados em saber detalhes sobre o porta-aviões USS Gerald R. Ford, vejam aqui). Biden, um ano antes das eleições e sem absolutamente nenhum êxito diplomático em três anos de governo, não tem o interesse em um conflito regional com potencial de alcance global, e atuou à sua maneira a fim de evitar a escalada. Ao mesmo tempo que o porta-aviões representava uma ameaça ao bloco Irã-Hezbollah, também significava uma mensagem ao governo de Israel. O USS Ford servia para acalmar os ânimos locais, enquanto era formado o governo de união em Israel. A presença das vozes de Benny Gantz e Gadi Eizenkot, contrárias à abertura de uma nova frente em um recém-criado gabinete de guerra, caiu como uma luva para Netanyahu. Ele, agora, tinha a quem responsabilizar por uma não ofensiva contra o Hezbollah para à sua base eleitoral ensandecida.
Desde então, vivemos uma guerra de atrito com o Hezbollah, que afeta o norte de Israel e o sul do Líbano. Já foram quase 400 mortos ao todo, na relação de um israelense para cada 10 libaneses/palestinos. Além do Hezbollah, há outras milícias, libanesas e palestinas (como o próprio Hamas), que atuam contra Israel. Sabemos que cerca de 60 mil israelenses que habitam até cinco quilômetros da fronteira estão evacuados de suas casas, por ordem do Estado. Há outros que vivem a uma distância um pouco maior, que igualmente decidiram se afastar. No caso do Líbano, fala-se em 90 mil desabrigados, além de uma série de povoados destruídos, resultado de ataques de Israel. Pelo lado israelense, há povoados, como o kibutz Manara, cuja destruição já atingiu a 70% da sua área construída, mais do que qualquer kibutz atacado pelo Hamas no dia 07 de outubro. Em outras localidades, como o kibutz Adamit, a maioria de seus moradores não pretendem retornar. A situação é devastadora.

No dia primeiro de setembro, começará o ano letivo em Israel. As famílias precisam planejar suas vidas e saber o que acontecerá até então, e o governo não é capaz de dar-lhes respostas. Os desabrigados vivem em situação precária, amontoados em quartos de hotéis, trailers em outros kibutzim, em casas de familiares ou amigos, ou alugando apartamentos temporários. Comércios foram fechados por meses, crianças tiveram que se adaptar a outras creches e escolas, com crianças e profissionais de educação desconhecidos. Na semana que vem, começam as férias escolares, e não há absolutamente nenhuma previsão sobre a volta à normalidade no norte do país. Pior que isso: há um receio dos moradores em retornar às suas casas enquanto o Hezbollah ocupa a região. Há um forte ceticismo quanto ao poder dos capacetes azuis, e um acordo não inspira a confiança da população. Nasrallah, por sua vez, já disse e reiterou que está pronto para negociações de cessar-fogo com Israel, no momento em que “o regime sionista interromper a agressão ao povo palestino em Gaza”. É aí que mora o impasse.
O que quer o governo israelense?
Binyamin Netanyahu, o primeiro-ministro de Israel, está sob forte pressão popular e em seu momento mais frágil eleitoralmente, nos últimos 20 anos. As pesquisas apontam para uma queda de 30 a 50% nas cadeiras do seu partido, o Likud, caso houvesse eleições hoje. Seu bloco, formado pela direita nacionalista, os sionistas religiosos radicais e os judeus ultraortodoxos, dificilmente chega às 52 cadeiras, número muito inferior às atuais 64 bancas, e ao mínimo necessário para formar o governo (61). Membros extremistas de seu próprio governo ameaçam derrubar a coalizão em caso de um cessar-fogo permanente na Faixa de Gaza, ainda que esta seja praticamente a única forma de resgatar os reféns mantidos em cativeiro pelo Hamas desde o dia 07 de outubro. A continuação da guerra em Gaza é algo eleitoralmente necessário para Netanyahu, que luta pela sua sobrevivência política com todas as suas forças, desde que tornou-se réu na Justiça, em 2019 (leia mais aqui).
A guerra contra o Hezbollah não era um interesse nem de Netanyahu, nem das FDI, e muito menos do governo Biden. Netanyahu sabe que um conflito com o Hezbollah será muito mais destrutivo, mortal, e com grande potencial de tornar-se impopular após algumas semanas. As FDI não desejavam lutar em mais de uma frente simultaneamente, e por meses a Faixa de Gaza era a sua prioridade. E o governo Biden, como já vimos, não tem o interesse em um conflito com potencial expansivo de uma guerra regional em ano eleitoral. Nos últimos dois meses, as coisas mudaram. Não para Biden, cujo incômodo com a escalada aumenta a cada dia, mas para Netanyahu e as FDI.
Se Netanyahu não desejava a guerra por temer o desconhecido, hoje sua percepção pode ser distinta. A ausência de respostas à população do norte, a continuidade das restrições à população devido ao tensionamento imposto pelo Hezbollah, o coloca em um lugar de fraqueza perante a sua base e os inimigos de Israel no Oriente Médio. O governo de Israel permite há oito meses que o Hezbollah imponha restrições à população israelense sem pagar um alto preço por isso. Para o leitor não familiarizado com os conceitos em Israel, é fundamental compreender a mentalidade coletiva do país: o Estado de Israel sustenta uma narrativa, na qual seus líderes acreditaram e acreditam, de que no Oriente Médio só há uma maneira de se impor, que é pela força. Quando um grupo, como o Hezbollah, intimida Israel e abala a estrutura do país usando justamente a força, o líder do país é tido como fraco e inviável. Se antes havia a quem culpar pela posição passiva em relação ao Hezbollah (como Benny Gantz e Gadi Eizenkot, ex-membros do gabinete de guerra), agora, desfeito o gabinete de guerra, já não há mais. Netanyahu é o responsável por tomar uma decisão, e a demonstração de fraqueza é algo que ele não pode admitir.
As FDI, por sua vez, alegam estar em vias de encerrar sua tarefa militar na Faixa de Gaza. O braço armado do Hamas está destruído, restando apenas duas brigadas. Há combatentes armados, dispostos a realizar ações de guerrilha e terrorismo, mas desorganizados, sem que haja a necessidade de um estado de guerra para combatê-los. O porta-voz do exército clamou por um projeto de poder local para a Faixa de Gaza, para que as FDI possam fazer a transição de comando e finalizar seu trabalho. O governo Netanyahu, por sua vez, se nega a elaborar um plano, pois este acarretaria em uma crise na sua própria coalizão*. As FDI entendem que não há muito mais a ser feito na Faixa de Gaza, e no momento, dispõem de mais soldados e armas para uma ofensiva no Líbano. O exército não decide quando haverá ou não uma guerra, mas, no momento, pode-se dizer que o receio de um conflito em duas frentes é substancialmente menor do que era em outubro.
Netanyahu, hoje, tem o apoio da maioria de sua coalizão, e não conta com uma objeção significativa das FDI para uma ofensiva contra o Hezbollah no Líbano. E sabe melhor do que ninguém que a oposição atual não hesitaria em apoiar o governo em caso de um conflito com o Hezbollah, como fez com respeito à guerra em Gaza. Mesmo que perca pontos e coloque em risco uma série de questões, Netanyahu sabe que não cairá sozinho, em caso de uma ofensiva contra o Hezbollah, que ainda por cima lhe daria uma margem de tempo maior.
Os riscos da guerra
Por que, então, Israel ainda não atacou o Hezbollah? Para responder esta questão, deveremos colocar algumas variáveis, que não necessariamente são levadas em conta por Netanyahu, mas certamente são apresentadas a ele em reuniões que traçam os possíveis cenários. Nos ateremos a quatro pontos centrais: (1) a preparação das FDI; (2) o poder do Hezbollah; (3) o risco de guerra total e (4) a negativa dos EUA.
A preparação das FDI
Ainda que as FDI tenham treinado e estudado o Hezbollah durante anos, para realizar um ataque cujo resultado seria uma guerra de algumas semanas (no melhor dos cenários), exige uma preparação adequada e focada. Desde o início da guerra em Gaza, Israel lançou mão de 350 mil reservistas, que correspondem a 70% do total disponível. A maioria destes se juntou à maioria dos 170 mil soldados da ativa, e estiveram lutando na Faixa de Gaza de outubro a março, quase sem intervalo. Além de cansados, os soldados lutaram em um cenário bastante distinto do que encontrariam no Líbano, o que exige algumas semanas de preparação. Reservistas já voltaram a ser convocados, mas, segundo as informações divulgadas, ainda não começaram um treinamento intenso para uma guerra contra o Hezbollah.
O poder do Hezbollah
Durante a guerra atual contra o Hamas, o centro de Israel foi bombardeado diariamente por três meses. Houve, todavia, poucos danos nessa região do país, sobretudo devido ao Domo de Ferro, mas a rotina dos moradores foi alterada drasticamente. Aulas foram suspensas, negócios fechados, o turismo minguou, crianças entraram em situação de estresse e pós-trauma. Isso sem falar nas famílias cujos pais (98% dos reservistas convocados são homens) passaram meses na Faixa de Gaza, quando não voltaram feridos ou mortos. Foram quase 300 soldados mortos e cerca de 8 mil feridos desde o dia 8 de outubro, além da destruição e evacuação de boa parte do sudoeste de Israel. O Hamas contava com um grande arsenal de foguetes Qassam, M-75, Fajr e R-160, de baixo custo e fácil fabricação. Além disso, o grupo possuía uma fábrica de balas de AK-47, e contava com um pequeno arsenal de mísseis antitanque e uma boa quantidade de foguetes RPG. O braço armado do Hamas, a Brigada Al-Qassam, contava com cerca de 35 mil combatentes. Demorou meses para que as FDI eliminassem a capacidade do Hamas de atacar o centro do país, mesmo se tratando de um grupo de estrutura tão precária.
O Hezbollah é uma força paramilitar muito mais poderosa que o Hamas. Segundo o pesquisador do Instituto de Pesquisa de Segurança Nacional (INSS), Yoshua Kalisky, o grupo conta com 100 mil soldados**, 150 mil foguetes e mísseis, e 20 mil drones. A maioria dos foguetes e mísseis do Hezbollah são de curto alcance (entre 10 e 20 km), de voo baixo, o que dificulta a ação do Domo de Ferro. O Domo de Ferro pode, também, colapsar, caso o Hezbollah dispare 3 mil foguetes por dia, como é esperado. Mas o Hezbollah também possui um arsenal de mísseis balísticos de longo alcance, como os Fateh-110, de produção iraniana, com capacidade de carregar até 500 kg de explosivos. Isso fora os mísseis certeiros, como Skud-C e Skud-D, de origem soviética, com alcance de 500 a 700 km. Ou seja: esses mísseis podem atingir qualquer região de Israel. Kalisky ainda destaca que há mísseis de cruzeiro e drones de fabricação local, cuja quantidade é desconhecida. O Hezbollah já lançou mão em algumas ocasiões, durante esta guerra, de mísseis antitanque iranianos Almas-1, capazes de destruir blindados (como o próprio nome diz), e bunkers, com precisão de 8 km, e mísseis antitanques Manpads (chineses), estes disparados dos ombros dos soldados. O Hezbollah também conta com blindados e canhões. Isso tudo sem contar com um arsenal de mísseis contra navios de guerra e a possibilidade do uso de armas químicas.
Vale destacar que o Hezbollah adquiriu anos de experiência e treinamento militar durante a guerra civil da Síria, da qual eles participaram intensamente. É do regime de Assad que o grupo pode ter adquirido armas químicas, e é na Síria que o Hezbollah estabeleceu contato fluido com outros exércitos e milícias. Outra diferença entre a guerra com o Hamas, é o fato de o Líbano ser um território montanhoso, enquanto a Faixa de Gaza é plana. O Hezbollah tem planos treinados de invasão à Galileia, e é provável que as FDI tenham que lidar com batalhas em solo israelense.
Por último, há o risco de ataques do Hezbollah direcionados afetarem o fornecimento de água e energia de Israel, que deixaria o país no escuro e sem água e esgoto. Além disso, o Hezbollah tem uma unidade cyber, e pode contar com o auxílio do Irã, uma potência regional no setor, afetando a rede de comunicações, da defesa civil e até dos hospitais israelenses. A julgar pelo comportamento do Hezbollah durante a Segunda Guerra do Líbano (2006), é de se imaginar que cidades e vilarejos israelense também serão bombardeados. Embora no confronto atual os ataques do grupo xiita majoritariamente tenham como alvo bases militares, houve dezenas de bombardeios contra regiões habitadas, e tudo indica que algo assim acontecerá em caso de uma guerra. A previsão é que o nível de destruição e as perdas humanas (sobretudo de soldados, mas também de civis) seriam consideravelmente maiores do que o confronto com o Hamas, e poderiam deixar especialmente o norte de Israel em frangalhos.
O risco de guerra total
O Hezbollah é muitas vezes considerado, de forma simplista, um proxy do regime iraniano. De fato, raríssimas são as ações tomadas pelo Hezbollah são independentes de uma coordenação com o Irã, sobretudo a Força Quds, que responde diretamente ao ayatolá. O Hezbollah atua sob a coordenação do Irã, embora tenha determinada autonomia local, como alguns outros grupos político-militares (a exemplo dos houthis, no Iêmen). Armas, treinamento militar, planejamento tático e estratégico, tudo isso é fornecido pelo Irã ao seu parceiro no Líbano, algo que não é segredo para ninguém.
A dúvida, que em Israel é tratada como um risco, é sobre o possível envolvimento do Irã e de milícias xiitas espalhadas pelo mundo árabe (sobretudo na Síria, no Iraque e no Iêmen) em um confronto com Israel. O Irã realizou seu primeiro ataque direto contra o Estado de Israel em abril deste ano, rompendo o status quo de uma guerra fria em curso nas últimas décadas. A passagem pelo Rubicão já foi feita, já não é impensável uma participação ativa do Irã nos confrontos do Hezbollah contra Israel, tornando o país ainda mais vulnerável e tendo que se defender em outras frentes. Além do já conhecido arsenal de mísseis balísticos e de cruzeiro e dos drones suicidas, o Irã também é uma potência regional cibernética, e poderia prejudicar a defesa israelense contra ataques vindos do Líbano e de outros lados. A participação direta do Irã representa uma grande preocupação para Israel, e certamente para os EUA.
A negativa dos EUA
O governo Biden segue trabalhando para evitar a escalada no Líbano, mas, aparentemente, percebe que seus esforços estão indo por água abaixo. Se em outubro a mensagem de Biden era focada tanto para Israel quanto para o Hezbollah (e o Irã), desta vez os estadunidenses compreenderam que há um só possível interessado na expansão da guerra: Netanyahu. Sendo assim, o governo dos EUA atrasa o envio de armas já aprovadas pelo congresso para Israel, e pressiona o governo israelense a não atacar o Líbano. Seus porta-aviões já não flutuam sobre as águas do Mar Mediterrâneo há meses, e o chefe das FFAA dos EUA, o general Charles Brown, declarou nesta segunda-feira (24/06) que os EUA não poderão ajudar Israel a se defender do Hezbollah da mesma maneira que ajudaram contra o ataque do Irã. Ele deu razões técnicas, alegando que os foguetes do Hezbollah são de curto alcance e voo baixo, para o qual a bateria antiaérea norte-americana não está preparada. O fato é que Brown põe mais pressão sobre Netanyahu, escancarando que sua escolha pela guerra envolve um risco maior do que se pensa.
O Irã demonstrou nos últimos meses não ter o interesse em uma escalada com Israel. É cômoda a situação para o regime iraniano, uma vez que pode acionar seus parceiros e livrar seu território de retaliações israelenses. Para o regime persa, tampouco interessa uma guerra entre o Hezbollah e Israel no momento, pois o grupo libanês é a maior ameaça que o país tem contra Israel e os EUA em caso de uma tentativa de ataque ao seu reator nuclear. Manter o status quo, explorando a vulnerabilidade de Israel, é mais interessante para o Irã do que uma guerra total. O regime também sabe que dificilmente os EUA manteriam uma posição passiva no caso de um envolvimento direto do Irã, e Biden poderia converter o ônus de uma guerra total em um êxito em uma empreitada justificada contra o Irã. Há, entretanto, a incerteza sobre a participação de países como Rússia e China neste potencial confronto, o que torna ainda mais arriscada qualquer ação.
Objetivos e consequências
Ainda que a estrutura militar do Hezbollah seja poderosa, o grupo não passa de uma milícia em um país em grave crise econômica, sem uma força aérea, uma marinha, e com uma estrutura militar ínfima se comparada ao exército israelense. Israel possui a maior e mais preparada força aérea do Oriente Médio, uma marinha moderna, unidades de elite da infantaria e da marinha de eficiência ímpar, além de ser uma potência cibernética mundial e possuir uma das melhores inteligências militares do planeta. Israel possui tecnologia de guerra de última geração, um exército relativamente numeroso, uma população acostumada a sacrifícios por guerras, e ainda recebe uma ajuda militar na faixa dos bilhões de dólares anuais do governo norte-americano (que tende a aumentar em tempos de guerra). Mesmo uma guerra total contra o Irã e seus aliados dificilmente poria em perigo a existência do Estado de Israel. A questão é outra.
O real perigo de uma guerra total, ou mesmo de uma guerra somente com o Hezbollah, é o nível de destruição que se acometeria sobre o país. Se o objetivo da guerra é devolver os habitantes do norte às suas casas, tudo nos leva a crer que após a guerra, muitas dessas casas estarão destruídas, e alguns milhares desses habitantes estarão mortos ou feridos. O preço a ser pago é altíssimo para um país pequeno e vulnerável, como Israel.
Além disso, cabe recordar que Israel e seus líderes são réus por crimes de guerra em dois processos nas cortes internacionais. Perguntado sobre a possibilidade da destruição da rede de energia israelense durante a guerra, o ministro da Energia, Eli Cohen (Likud), disse que Israel poderia ficar algumas horas sem energia, o Líbano ficará meses. Conscientemente ou não, o ministro fez uma confissão de culpa prévia, uma admissão de que Israel usará dos mesmos artifícios pelos quais está sendo julgado em Haia, como a punição coletiva e crimes contra civis. E tudo nos leva a crer que, frente a um ataque muito mais poderoso que os executados pelo Hamas, as FDI serão usarão de ainda mais força no Líbano, o que já preocupa a comunidade internacional. O secretário-geral da ONU, António Guterres, disse que é inadmissível que o Líbano se transforme em uma nova Faixa de Gaza. Outros líderes demonstraram preocupação, com razão.
A guerra contra o Hezbollah é contraproducente para Israel em todos os sentidos: além da total incapacidade de eliminar o grupo xiita do Líbano, Israel não tem condições de ocupar todo o território libanês e suas fronteiras, e impedir a entrada de armamento, como faz em Gaza. Enquanto a Faixa de Gaza tem cerca de 360 km/2, o Líbano tem mais de 10 mil km/2, e uma população de mais de 5 milhões de pessoas. O máximo que Israel poderia alcançar em um confronto contra o Hezbollah seria enfraquecer militarmente o grupo por alguns anos, até que eles voltem a rearmar-se. E isso a um custo altíssimo de vidas, de infraestrutura e de recursos.
De fato, o Hezbollah é uma ameaça constante a Israel, um perigo que deve ser combatido pelo país. No entanto, a guerra já se mostrou ineficiente em 2006, e tende a ser ainda mais problemática caso ocorra em 2024. A melhor maneira de enfraquecer o Hezbollah é semelhante aos meios mais eficazes de combate ao Hamas: esvaziar o seu apoio no mundo islâmico, através da criação de um Estado palestino e do estabelecimento relações diplomáticas com os países árabes sunitas. A hostilidade do Hezbollah a Israel encontra eco no Oriente Médio devido à opressão exercida por Israel aos palestinos, através da ocupação e da negação dos seu justo direito à autodeterminação nacional. O primeiro passo a ser dado para combater o Hezbollah é o cessar-fogo na Faixa de Gaza, que exige o reconhecimento de que o Hamas não será extinto por meios militares. O governo Netanyahu não fará isso nas circunstâncias atuais, o que nos aproxima de uma guerra inútil, mortífera e perigosíssima. As ameaças do governo Biden não são levadas a sério por Netanyahu, vai se esvaindo a última chance de um freio ao ímpeto destrutivo do primeiro-ministro israelense, movido pelo seu instinto de sobrevivência (política). Salve-se quem puder.
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*A única força palestina (fora o Hamas) capaz de governar a Faixa de Gaza é a Autoridade Palestina, contra quem a direita incitou nos últimos 30 anos, ininterruptamente. A Autoridade Palestina, por sua vez, condiciona a sua entrada na Faixa de Gaza a negociações por um Estado palestino, movimento apoiado pelos EUA e pelos países árabes do Golfo, além do Egito e da Jordânia. Este, justamente, é o pesadelo de Netanyahu, que insiste na permanência da guerra justamente para não ser empurrado em direção a negociações e cessões à Autoridade Palestina.
**Há informações sobre um exército de cerca de 30 a 45 mil voluntários turcos, prontos a auxiliar o Hezbollah em um possível confronto com Israel.
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Notícias relevantes usadas de base para este artigo (em hebraico):
Foto de capa: Tasnim News Agency reporter (uncredited) (tasnimnews.com - 21/05/2023). Retirado de https://commons.m.wikimedia.org/wiki/File:2023_Hezbollah_drill_in_Aaramta_04.jpg
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