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A falácia do conflito religioso



Publicado originalmente em 18/05/2015, no Conexão Israel


Tenho escutado e lido cada vez mais gente dizendo que o conflito entre Israel e os palestinos é um conflito religioso. Isto, escrito ou falado desta forma, não passa de uma falácia. Esse nunca foi e continua não sendo um conflito cujas principais motivações são religiosas. Não se trata de um choque de civilizações e culturas, através do qual uma das duas prevalecerá, e até que isto aconteça não haverá solução. Não. Pelo menos em relação ao conflito entre Israel e os palestinos, esta categorização não se encaixa. Nem mesmo o conflito árabe-israelense (se é que ele ainda existe) é de cunho primordialmente religioso. Caso contrário, talvez se chamasse conflito judaico-islâmico, algo sobre o qual, diga-se de passagem, nunca ouvi falar. Sei que você, leitor, já leu ou escutou o contrário. Neste espaço esmiuçarei esta visão.


Antes de mais nada, preciso dizer que rejeito quase todos os determinismos. Portanto, a princípio de conversa, admitirei: há, sim, influência religiosa no conflito. Às vezes ela se manifesta em maior grau, outras vezes se vê menos. Mas ela existe. E onde não há? Por acaso há alguma sociedade em qualquer lugar do planeta na qual a influência da religião é insignificante? Acredito que não. A história da humanidade tem a religião como fator determinante desde sempre, e somente no século XIX as filosofias de vida e ideologias não-religiosas triunfaram. Algumas delas preencheram através de seus rituais e crenças o papel antes ocupado pela religião, de modo que seja até difícil diferenciar uns dos outros. Mas isto, de nenhuma forma, é suficiente para superdimensionarmos a religião, a ponto de transformar este conflito em um conflito religioso.


Ao longo da história, judeus e muçulmanos consolidaram uma relação bem mais pacífica do que a judaico-cristã. Mesmo assim, parte dos críticos alegam que o Alcorão tem trechos antissemitas, e utilizam isto como argumento para incriminar a religião muçulmana e julgá-la judeofóbica. Ora, são poucas as incitações antissemitas no Novo Testamento? Basta passar os olhos pelos evangelhos (sobretudo o Livro de Atos) e verá que as incitações contra os judeus são diversas. Judeus são acusados de crucificar Jesus, tentar matar Paulo, rejeitar a palavra divina conscientemente… Não refuto a ideia de que o Corão tenha trechos comparáveis. Mas a julgar pelos livros, nem mesmo a Torá (Pentateuco) escapa da incitação ao ódio contra os povos não escolhidos em diversas ocasiões. Repare nesta passagem do Êxodo:


“E disse-lhes: Assim diz o Senhor Deus de Israel: Cada um ponha a sua espada sobre a sua coxa; e passai e tornai pelo arraial de porta em porta, e mate cada um a seu irmão, e cada um a seu amigo, e cada um a seu vizinho. 28 E os filhos de Levi fizeram conforme à palavra de Moisés; e caíram do povo aquele dia uns três mil homens. 29 Porquanto Moisés tinha dito: Consagrai hoje as vossas mãos ao Senhor; porquanto cada um será contra o seu filho e contra o seu irmão; e isto, para que ele vos conceda hoje uma bênção.”

Nós, não fanáticos (assim espero), sabemos que obras religiosas estão repletas de contradições e incongruências. Todas elas. Julgar, portanto, que apenas um de dois povo é capaz de fazer uma leitura interpretativa capaz de filtrar as partes negativas de seu livro sagrado, é partilhar do mesmo princípio que os antissemitas medievais: diziam eles que os judeus tinham escrituras profanas, e justificavam seus argumentos baseando-se nos trechos violentos do Talmud, sobretudo. Ora, sejamos razoáveis: eu, pelo menos, acredito que a grande maioria dos leitores dos livros sagrados sequer pensa em por em prática todas as leis e recomendações religiosas dos profetas que ali se expressam. Os fanáticos que optam por seguir a incitação ao ódio são minoritários. Não se pode culpar a religião islâmica pelo conflito, como não se pode culpar a cultura judaica. Ou, pelo menos, suas escrituras.


O conflito iniciou-se, tal qual o vemos hoje, na década de 1920, após a conquista britânica da região. Não havia conflito antes da década de 1920, desafio qualquer um de vocês a contra-argumentar. O entendimento por parte dos árabes de que o imperialismo britânico era aliado do nacionalismo judaico, sobretudo após a Declaração Balfour (1917), gerou animosidade entre as partes, e deu origem ao conflito. É, no entanto, curioso notar que o primeiro motim de cunho nacionalista árabe contra o sionismo (em Jaffa, 1921), foi organizado por árabes cristãos. A primeira incitação contra a colonização judaica na Palestina Otomana também foi de árabes cristãos, em 1891, assim como os primeiros jornais árabes que condenavam o sionismo (como o Al Karmel, de Haifa). Já em 1905, Naguib Azoury, árabe-cristão, foi o primeiro a afirmar que a existência dos árabes na Palestina estava condicionada ao fim do movimento sionista. Os árabes cristãos também estavam na dianteira do nacionalismo Sírio-Libanês, em combate contra outros… cristãos! Em outras palavras, fica difícil culpar o islã pelo princípio do conflito, já que o nacionalismo árabe iniciou-se por meio de cristãos, e jamais por princípios religiosos. Não seria mais razoável supor que a questão tem cunho mais nacional que religioso?


Entre os que caracterizam o conflito como religioso, alguns culpam o judaísmo, e não o islã por todos os males. Alguns ignorantes desconhecem que o sionismo tem raizes seculares. Quem teve acesso às obras dos principais teóricos do movimento, verá que até os anos 1920, absolutamente nenhum deles baseia-se em escrituras sagradas, no Tanach (Antigo Testamento), ou em qualquer fonte religiosa quando estabelece os princípios do nacionalismo judaico. Nem Theodor Herzl, que sequer conhecia qualquer destas fontes, nem Achad Ha’am, pai do sionismo espiritual, que as conhecia mas não sustentava seus argumentos nelas. Nem Ze’ev Jabotinsky, direitista radical, nem Ber Borochov, teórico marxista (sim caro leitor, há correntes sionistas marxistas). O único dos grandes pensadores sionistas que baseou-se em ideias religiosas foi o rabino Kook, cuja corrente jamais foi majoritária no movimento sionista.


De poucos anos para cá, alguns decidiram considerar que um conflito de cunho nacional seria, na realidade, um conflito religioso. Alegam que há uma disputa territorial entre dois povos que reivindicam o mesmo pedaço de terra. Que, como se trata de um pequeno pedaço de terra, a ideia de dividi-la entre os dois é extremamente problemática, no sentido técnico. Mas o suposto aspecto cultural-religioso entre o oriente islâmico e o ocidente seria a chave para a manutenção deste conflito. Dizem que mundo árabe islâmico, no qual os palestinos estão inseridos, enxerga Israel como o país vê a si mesmo: um posto avançado do ocidente em uma área muçulmana e como invasão de infiéis na presença judaica autônoma e soberana no Oriente Médio. Israel e o sionismo seriam vistos pelo mundo árabe islâmico como um movimento ilegítimo. Esta seria a raiz, ou a causa do conflito em curso. Caso fosse reconhecida a legitimidade do povo judeu sobre este território ou uma fraçao pequena dele estaríamos diante de um conflito passível de ser solucionado. Atualmente, dada a mentalidade religiosa exposta direta e indiretamente nos discursos e documentos do movimento nacional palestino, não é. Absurda generalização, tocando a islamofobia. Primeiramente, por fazer o “mundo oriental” uma generalização, metendo “árabes”, “palestinos”, “muçulmanos” e etc no mesmo saco de gatos. Depois, por julgar que o cerne da questão é o não reconhecimento do Estado judeu. Os palestinos já reconheceram o Estado de Israel através dos Acordos de Oslo, em 1993. E, se não reconhecem Israel como um Estado judeu, não são excessão: absolutamente nenhum país, não importa a religião prodominante, reconhece Israel como um Estado judeu, mas nem por isso estamos em conflito com todos os outros. O terceiro problema é considerar que é a ideologia religiosa islâmica que impede qualquer entendimento, e não a leitura de uma minoria radical sobre a mesma, e que, na verdade, não impede nenhum acordo, pois, como já foi dito, os radicais são minoria.


Nenhum dos dois lados possuem lideranças religiosas efetivamente, e assumidamente apontam o território e questões nacionalistas como impasse: as fronteiras do futuro Estado palestino, a divisão de Jerusalém, a questão dos refugiados palestinos e o reconhecimento mútuo são as principais causas. O que há de religioso aí? Não lhe parece, caro leitor, que as questões são muito mais nacionais do que religiosas? Por acaso o fato de os palestinos passarem por check points para irem de suas casas ao trabalho todos os dias se deve a alguma questão religiosa? Acho que não.


Alguns podem alegar que eu estou retirando toda a importância do Hamas da história. Claro que não. Simplesmente o estou reduzindo ao que ele realmente é: uma casca de banana (muito conveniente), na qual políticos israelenses e palestinos insistem em escorregar. A influência do Hamas e do Conselho de Judéia e Samária, por exemplo, não são determinantes. Nenhum deles é ator principal no espetáculo, longe disso. Às vezes atuam em cenas importantes, mas na maior parte do tempo, figuram sem destaque. Ambos seriam personagens principais, a ponto de transformar o conflito em religioso, caso a situação fosse uma das duas seguintes: (1) Um dos grupos passa a controlar Israel ou a Autoridade Palestina (AP); (2) Israel e a AP chegam a um acordo, mas nenhum dos grupos se rende. Neste caso, eles passariam a ser os atores principais do conflito. Enquanto o conflito se chamar israelense-palestino, enquanto milhões de palestinos não possuírem nenhuma nacionalidade e forem obrigados a cruzar por checkpoints todos os dias, enquanto milhares de palestinos seguirem relembrando a Nakba como uma catástrofe nacional, enquanto a AP, comandada pela Fatah, que reconhece e coopera com o Estado de Israel for considerada uma adversária, e não uma aliada, o conflito não será primordialmente religioso. O conflito não é entre Israel e o Hamas, é entre Israel e o povo palestino como um todo. Israel é um Estado nacional, e o povo palestino é o símbolo da autodeterminação nacional. A religião não encontra espaço no aspecto majoritário do conflito. Hamas e colonos são pequenezas. Alguém aqui duvida que, caso Israel e a AP cheguem a um acordo, seria fácil desarmar o Hamas em Gaza?


Meu ponto é o de que tais analistas são na realidade políticos, e desejam transformar o conflito em religioso para passar a culpa para o outro lado. Os determinismos de ambos os lados da crítica são até parecidos: alguns islamofóbicos julgam que os muçulmanos jamais aceitarão a presença de Israel, pois estão comprometidos com o princípio corânico do Dar-al-Islam: todas as terras que já foram antigos califados islâmicos deverão voltar a ser regidas pela Sharia (lei islâmica). A mesma premissa vale para os antissemitas: dizem que os judeus baseiam-se na promessa divina da Grande Israel (Eretz Israel Ha’Shlema): tudo o que o Todo Poderoso prometeu a Abraão, desde o Nilo até o Eufrates. O que vale para um, vale para o outro. Os princípios sobre os quais a interpretação fundamentalista religiosa se aplica, são igualmente interpretações. Há judeus fundamentalistas (parte dos colonos), que, de fato, desejam toda esta terra, assim como há muçulmanos, como o grupo Hamas, que não admitem a presença judaica na Palestina histórica. Mas julgar que estas são as causas ou que sãs reais motivadores do conflito é desmerecer as maiorias e dar razão aos fundamentalistas. Só minorias admitem estas ideologias, e justamente não são estas minorias que comandam os governos. Benjamin Netanyahu e Mahmmoud Abbas já poderiam ter chegado a um acordo há tempos, caso fosse esta a razão do conflito. Nenhum dos dois há décadas defende tais ideias fundamentalistas.


É verdade que tais fundamentalistas atrapalham (e muito!) o processo de paz. O Hamas hoje controla parte dos territórios, e utiliza-se deste controle para boicotar a paz de toda forma. Os colonos israelenses radicais também seguem construindo suas casas na Cisjordânia, de modo que cada vez é mais difícil separar os territórios em dois países. As ideologias fundamentalistas chegaram ao ápice em Israel em 1995, quando um destes extremistas assassinou o primeiro-ministro, e entre os palestinos em 2007, quando Hamas e Fatah entraram em uma guerra civil. Por isso, volto ao segundo parágrafo: não descarto a influência da religião neste conflito.


O que não podemos aceitar é que esta influência se torne regra. Os dois governos são comandados por seculares, podem ter traços radicais, mas nada que impeça uma mudança de opinião. Quando categorizamos um dos dois como fundamentalistas, e determinamos a sua postura política como resultado de uma mentalidade religiosa radical, não há como esperar por nada de bom. Quando culpamos os fundamentalistas pelos fracassos nas negociações, tiramos a responsabilidade de quem realmente a tem. Hoje em dia, nem a maioria do governo israelense, nem a Autoridade Palestina, são fundamentalistas religiosos, por mais que alguns nos tentem enfiar goela abaixo tal máxima. Ambos explicam seu impasse em relação ao conflito baseando-se em pressupostos circunstanciais, de cunho bem mais nacional que religioso. Hamas, Jihad Islâmica e grupos radicais religiosos judeus fazem parte do conflito, mas não o determinam. Talvez tenhamos um conflito religioso no dia em que os líderes moderados dos dois lados entrarem em acordo, e criarem o Estado palestino. Neste momento, restarão só os radicais dos dois lados, que talvez tentem sabotar a coexistência. Enquanto isso não acontece, eles são tangentes, apenas participam do processo de forma marginal. Não possuem força para impedir um acordo, apenas para tentar desestabilizar as (hoje inexistentes) negociações. Os únicos que lhes atribuem força são justamente os que hoje não estão interessados em chegar à paz. Estes, em sua maioria, não são fanáticos. Apenas estão equivocados, e tentam transformar o conflito de cunho nacional em algo que não é. Espero que nunca consigam.


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