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30 anos atrás: A Primeira Intifada



Originalmente publicado em 08/12/2017, no Conexão Israel


Há exatos 30 anos, tinha início nos territórios da Faixa de Gaza e da Cisjordânia, o maior levante popular palestino contra a ocupação israelense. Era a Intifada (termo árabe para “revolta”, “agitação” ou “levante”), um movimento espontâneo palestino, não organizado por nenhum grupo político ou armado (embora alguns tenham se aproveitado da situação para fortalecer-se), que traria consequências drásticas à região.


Antecedentes


Já completavam 20 anos de ocupação israelense na Faixa de Gaza e na Cisjordânia. As fronteiras eram efetivamente abertas. Nenhum motorista desavisado, por exemplo, percebia quando cruzava a “linha verde” (que separa a Cisjordânia de Israel pré-1967), ou que havia entrado na Faixa de Gaza. Os habitantes seculares de Jerusalém enchiam os restaurantes de Belém e Ramallah aos sábados, quando praticamente todo o comércio fecha as portas na capital israelense. Habitantes de Ashkelon iam a mecânicos em Gaza, que cobravam preços mais baratos pelo mesmo serviço. Centenas de milhares de palestinos trabalhavam em Israel, em todos os setores. A economia palestina estava em pleno crescimento, e o poder de consumo dos palestinos disparava. A infraestrutura na Faixa de Gaza e na Cisjordânia havia dado um salto de qualidade, expandindo serviços de saneamento, eletricidade e água encanada para a maioria da população nestes 20 anos. Tal momento é recordado com carinho por parte das duas populações.


No entanto, estes palestinos eram mão-de-obra barata. Parte significativa dos palestinos viviam em condição de pobreza extrema. Além disso, não possuiam cidadania israelense, não possuíam direitos plenos. Suas casas poderiam ser vasculhadas e membros de suas famílias podiam sofrer prisões administrativas a qualquer momento. Eventualmente o terrorismo mostrava a sua cara, geralmente por meio de ações da Brigada de Mártires de Al-Aqsa, braço armado do Fatah (o Hamas foi fundado em 1987, meses antes da eclosão da Intifada). Bases militares eram instaladas nos territórios ocupados, e as colônias judaicas se expandiam como nunca. Os palestinos viviam sob um regime de ocupação, apesar das fronteiras abertas e da existência de uma flexibilidade com a qual hoje mal poderiam sonhar.


Três fatores nos ajudam a compreender porque, justamente no ano de 1987, eclodiu a revolta palestina contra Israel. São causas de ordem política e social:


Apesar da má situação vivida pelos palestinos, a ocupação israelense era quase um mimo se comparada ao que foi a ocupação egípcia na Faixa de Gaza e a “anexação” jordaniana à Cisjordânia, entre 1949-67. Os palestinos tinham mais possibilidades de emprego, eram melhores atendidos por organizações de direitos humanos, e a pobreza diminuiu com a ocupação israelense. A situação era ruim, mas havia melhorado. Os 20 anos de ocupação, no entanto, foram o suficiente para que nascesse e crescesse uma geração que não havia vivido sob o domínio egípcio e jordaniano. Sua única referência eram os israelenses, que não viviam sob nenhum regime de ocupação, em um país que se desenvolvia rapidamente. Esta geração de jovens não aceitava a ocupação com facilidade, não havia vivenciado as guerras de 1948 e de 1967 (o trauma, apesar de coletivo, era mais distante), e via apenas injustiças.


A Guerra Irã-Iraque, que se prolongava por quase uma década, tirou os palestinos do centro da atenção do Oriente Médio. A questão palestina ano a ano ganhava notoriedade, era debatida internacionalmente na ONU e em outros fóruns. Um célebre discurso de Yasser Arafat na ONU, em 1974, teve repercussão internacional comparável ao de grandes líderes mundiais. Os palestinos, inclusive, conseguiram que fosse aprovada uma resolução que considerasse sionismo semelhante ao racismo no fim dos anos 1970. De repente, uma guerra entre dois Estados muçulmanos, imediatamente após uma revolução islâmica em uma das maiores potências (e mais ocidentais) da região, muda o foco totalmente: a questão palestina teria sido relegada a segundo plano. Outros conflitos, igualmente, marginalizavam ainda mais a questão palestina, como a Guerra Civil Libanesa, que já se arrastava por 12 anos. A sensação de que a situação poderia melhorar no fim dos anos 1970 foi substituída por uma quase total negligência por parte da comunidade internacional. Aparentemente, ninguém mais se recordava do sofrimento palestino.


A normalização da ocupação sem interferências externas deixava os palestinos sem nada a perder. O constante crescimento da colonização judaica nos territórios ocupados, em 15 anos, havia transformado totalmente a região. Os palestinos não viam possibilidades de mudança no momento em que o Egito normalizara as suas relações com Israel abrindo mão de incluir a questão palestina no acordo de paz, e a Jordânia dava mostras de que faria o mesmo.


No dia 8 de dezembro de 1987, um caminhão de colonos israelenses se chocou acidentalmente com um ônibus que levava trabalhadores palestinos para as suas casas após um dia de trabalho, matando quatro passageiros do coletivo. Este caso foi o estopim para que uma grande revolta eclodisse na Faixa de Gaza e, alguns dias depois, na Cisjordânia.


A Revolta


Após o acidente, um rumor surgiu na cidade de Jabalya (Faixa de Gaza) de que o primo de um dos colonos que estavam no caminhão havia sido apunhalado dois dias antes, tendo sido o choque intencional, um ato de vingança. Ao voltarem do enterro, habitantes de Jabalya foram em direção à base militar próxima à região e apedrejaram os soldados que faziam a guarda. Em pouco tempo, uma multidão se somou à revolta e os distúrbios aumentaram, com bombas incendiárias, pedras e paus voando para todos os lados.


O levante se espalhou rapidamente para o campo de refugiados de Rafah, próximo à fronteira com o Egito, e a toda a Faixa de Gaza. Em questão de dias, vários povoados e cidades da Cisjordânia se insurgiram, somando suas forças aos protestos em Gaza. Os quase dois milhões de palestinos que viviam nos territórios ocupados no fim de 1987 pareciam manifestar-se de maneira unânime.


Nem o exército nem o governo israelenses tiveram noção da dimensão do levante. O ministro da Defesa, Itzhak Rabin, viajou aos EUA no dia 10 de dezembro, acreditando que o exército daria conta de esfriar as manifestações sem problemas. Na realidade, nem mesmo a liderança palestina, exilada em Túnis, compreendia de fato o significado da revolta, e tardou até saber utilizá-la a seu favor. Rabin voltou dos EUA no dia 21 de dezembro, culpando erroneamente a Síria e Irã por inflamarem os palestinos a rebelarem-se. O ministro da Defesa distribui cacetetes a seus soldados, que não estavam acostumados a lidar com civis desarmados, e os instruiu a usar a força (alguns afirmam que Rabin os teria ordenado quebrar seus ossos, caso fosse necessário). Percebendo que seus soldados, frente a uma situação inusitada e de tensão, abusavam da força até mesmo após prender manifestantes, Rabin se dá conta de que nem ele nem o exército compreendiam o que acontecia.


As tensões somente aumentam. Rabin decide conversar com os soldados israelenses no campo e escutá-los pessoalmente. Começa, então, a preparar o exército, acostumado a enfrentar terroristas e exércitos nacionais, para controlar um levante popular. Rabin de forma alguma era um moderado quanto ao aspecto militar: suas ordens eram de ter mão firme, disparar se necessário, e reprimir os protestos. No entanto, membros do governo como o ministro da Indústria e Comércio Ariel Sharon, acusavam Rabin de ser demasiadamente brando e pediam que o exército bombardeasse campos de refugiados com aviões, e que ocupasse as cidades e aldeias palestinas com tanques. 


Se por um lado é verdade que Rabin jamais chegaria a este nível, alguns excessos foram cometidos durante este momento. O ministro da Defesa evocou os Regulamentos de Emergência que haviam permanecido no Código Civil desde a época do Mandato Britânico que permitiam a punição coletiva, as prisões preventivas sem mandato, a destruição de casas de envolvidos em atos de violência, além da deportação de líderes da revolta. Por algumas vezes a Suprema Corte de Justiça proibiu algumas destas ações, mas o que as freou, de fato, foi o seu insucesso como resultado. A violência por si só não podia conter uma revolta popular.


A mídia e a OLP


A Primeira Intifada era o primeiro confronto do qual o exército israelense participava que fora totalmente televisionado. As imagens feitas, com soldados disparando (ainda que fossem balas de borracha) contra civis desarmados palestinos, mobilizou a opinião pública mundial (veja no vídeo abaixo um exemplo do que se transmitia na televisão na época). Não havia como não solidarizar-se com a revolta de um povo oprimido, vivendo em território ocupado, e sendo reprimido violentamente por um dos exércitos mais bem equipados do mundo.





A OLP, finalmente, decidiu aproveitar-se das tensões para desafiar Israel, enviando seus líderes refugiados de navio à Faixa de Gaza em fevereiro de 1988. A primeira tentativa foi frustrada pelo exército israelense, que bombardeou o navio no porto de Limassol, no Chipre, antes que ele zarpasse (sem fazer vítimas). O Mossad também atuou, assassinando o chefe do braço armado da OLP, Abu Jihad, na Tunísia, enfraquecendo o comando político-militar do movimento, mas sofrendo fortes críticas internacionais. Este assassinato, no entanto, gerou uma onda de revoltas ainda mais violentas, ajudando na identificação do povo palestino com a OLP. A ação israelense contra a OLP durante a Primeira Intifada acabou por fortalecer a organização e seu principal líder, Yasser Arafat.


Ao assumir a liderança sobre o movimento, Arafat conseguiu consolidar a organização a qual liderava como representante legítimo do povo palestino, unificando diversos grupos e repercutindo internacionalmente, especialmente entre os países árabes, que voltaram as suas atenções à questão palestina após um longo período de negligência. A OLP, então, trabalhou para que a Intifada se prolongasse durante o maior tempo possível, mesmo que tivesse que reduzir a intensidade dos protestos. Isso lhe daria fôlego para coordenar ações políticas. Simultaneamente a isso, a OLP começou a falar sobre a criação de um Estado palestino (e de uma confederação jordaniana-palestina) nos territórios ocupados a partir de um discurso moderado, que ganhou a simpatia da comunidade internacional (em especial dos países do terceiro mundo).


Os êxitos políticos de Arafat eram tantos que em 1988, após um pedido seu, países da Europa debatiam sobre uma conferência de paz para o Oriente Médio (que realizar-se-ia dois anos depois, em Madri).


A "Intifada", também, foi um protesto de organização sem precedentes na história palestina. Entre outras coisas, ela apresentou algumas novidades. A primeira delas, a presença de comitês de trabalho voluntário, de mulheres e sindicatos profissionais, que inseriram-se na Intifada de maneira crucial, e organizaram o povo em prol de um objetivo comum. Estas organizações difundiram ideias de solidariedade e de responsabilidade social, como nunca visto antes. Também criou uma Direção Nacional Unificada da Intifada, cuja tarefa consistia em formular as reivindicações imediatas de ordem nacional e estabelecer técnicas de resistência, demonstrando uma grande capacidade de mobilização. O discurso foi rechaçar a ocupação e reafirmar os direitos nacionais palestinos.


Prolongamento e ações internacionais


A Intifada prosseguiu até o ano de 1993. Quando começou, Israel tinha um governo de união nacional (Trabalhistas e Likud). Em 1990, os trabalhistas deixam o governo e o Likud conduz o país à sua maneira. Somente em 1992 os trabalhistas voltam ao poder, sem a presença do Likud.


Durante os anos em que o Likud governou sem a presença trabalhista, iniciou-se uma tentativa de diálogo para frear a violência e, se possível, dar uma solução à questão palestina. A comunidade internacional pressionava Israel a sentar-se à mesa para negociar. A primeira proposta veio do presidente egípcio, Hosni Mubarak, que conseguiu unir toda a Liga Árabe em função de uma posição definida. Os EUA e a URSS também tentaram assumir papéis de liderança, propondo planos de pacificação para a região. Foram feitas conferências na Tunísia, em Marrocos e nos EUA, mas todas esbarravam na recusa do primeiro-ministro israelense Itzhak Shamir (Likud) em aceitar qualquer proposta que obrigasse Israel a recuar um centímetro sequer em sua presença na Faixa de Gaza ou na Cisjordânia. A Primeira Intifada teria seu fim, praticamente, em conjunto com a assinatura dos Acordos de Oslo.


Consequências


A Primeira Intifada teve 1.779 mortos, sendo mais de 1.502 palestinos (dos quais mais de 300 teriam sido mortos pelas próprias forças palestinas), e 277 israelenses (175 civis e 102 membros das forças armadas). O acontecimento teve desdobramentos que até os dias de hoje influenciam muito nas vidas dos israelenses e dos palestinos:


O fechamento das fronteiras, e a diminuição da presença de palestinos ocupando postos no mercado de trabalho israelense foi, gradualmente, sendo postos em prática. A grande onda de imigração de judeus oriundos das ex-repúblicas soviéticas (estima-se que ultrapassaram os 1,1 milhão entre 1991 e 2004) permitiu que a mão-de-obra palestina fosse substituída, mudando as relações de dominação e quase que impossibilitando o contato entre os dois povos. Tal situação se agravaria após a Segunda Intifada.


A consolidação da OLP como legítima representante do povo palestino e sua posição de moderação, aliada ao fracasso de suas ações armadas e ao sucesso da revolta popular, culminou em posturas mais moderadas por parte da organização. O terrorismo e a guerrilha seguiram sendo armas utilizadas, mas cada vez em menor intensidade, sendo paulatinamente substituídos pela diplomacia.


Se por um lado a OLP optou cada vez mais por um caminho de moderação, grupos como o Hamas e a Jihad Islâmica assumem o vácuo deixado e ocupam a posição de radicais intransigentes, apresentando-se como legitimadores do uso da violência.


O enfraquecimento da ocupação israelense como política de Estado, combatida cada vez mais por movimentos de direitos humanos nacionais e internacionais, obriga o governo a posicionar-se. Um número sem igual de soldados se recusou a servir as forças armadas durante a Intifada, o que provocou uma crise político-social sem precedentes. Israel se via forçada a negociar (e ceder) tanto pela comunidade internacional, quanto por uma grande parcela de sua população, que acreditava que a ocupação rompia as barreiras da moral.


O desequilíbrio de forças teve fim quando o líder da OLP, Yasser Arafat, decidiu por apoiar Saddam Hussein durante a Guerra do Golfo, e rebaixou-se ao nível de prestígio do governo israelense pós-Intifada. Tais condições somadas, frente a uma reflexão pragmática feita pelas duas lideranças, culminaram na assinatura dos Acordos de Oslo (1993 e 1995), que estabeleciam relações e reconhecimento entre o governo israelense e a OLP (agora Autoridade Palestina), que receberia determinada autonomia para governar, com limitações, os territórios da Faixa de Gaza e da Cisjordânia.


Bibliografia


“Rabin, o Soldado da Paz”. Pela Equipe do The Jerusalem Report. Editora Nova Fronteira. 1996. Rio de Janeiro


“Righteous Victims. A History of Zionist-Arab Conflict: 1881-2001”. Benny Morris. Vintage Books. 2001. New York.


"כתם של עננה קלה - חיילים צבא וחברה באינתיפאדה". יואל אליצור (עורך) הוצאת הקיבוץ המאוחד, 2012.

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Foto de capa: Michael Giladi.  IDF Spokesperson's Unit / CC BY-SA 3.0

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